Coisas que não quero para a minha filha
Eu sei que o correcto é dizer coisas que “não gostava” para a minha filha, mas como adulta sei a diferença e hoje, egoisticamente, reservo-me o direito de não querer. Nem para ela nem para os filhos de outro alguém.
Não quero que viva relações vazias de afectos
No outro dia, no Metro, entraram um rapaz e uma rapariga que, por acaso, se sentaram à minha frente. Ambos concentrados nos respectivos telemóveis, ambos alheios ao que se passava à sua volta. Só passadas cerca de cinco estações é que ela levantou o olhar e se inclinou para ele. Até ali não conseguia adivinhar que estavam juntos. Mas estavam. Quero para a minha filha uma relação em que o silêncio existe e não é constrangedor, em que significa uma cumplicidade que ultrapassa as palavras. Mas não quero que tenha uma relação em que o diálogo, o olhar nos olhos, seja substituído pelas tecnologias.
Não quero que ame coisas em vez de amar as pessoas
Quero que saiba a diferença entre querer ter e desejar, gostar de ter (a tal diferença que me gabo de já dominar). Que seja feliz com pouco, com o essencial e que os seus sonhos não sejam coisas materiais, mas sim algo que a motive a chegar mais longe, a conhecer lugares novos, novas culturas, pessoas, histórias, caminhos.
Não quero que trate os outros como se lhe fossem inferiores
Seja quem for, em que circunstância for. Não quero que sinta que pode olhar alguém de cima, que menospreze por preconceito ou ideologia. Quero que saiba respeitar as diferenças, todas elas, que possa viver em liberdade aceitando a liberdade dos outros – convivendo com ela, sem a julgar, para que receba o mesmo tratamento.
Não quero que desista à mínima contrariedade
As coisas não vão ser sempre fáceis e às vezes vai querer desistir. E muitas vezes vai fazê-lo, porque é o mais inteligente a fazer. Que nas outras vezes não se deixe vencer pelo cansaço, pela insegurança ou pelo medo. Que chegue onde pode chegar, por seu próprio mérito.
Não quero que sinta que não é importante, que não é capaz
Infeliz e invariavelmente irá confrontar-se com situações em que os outros ou as circunstâncias da vida a farão duvidar. Que ela tenha força para não se deixar abalar nas suas convicções.
Não quero que faça algo só para impressionar os outros, para se integrar
Sei que faz parte e que muitas crianças passam por isso, em maior ou menor escala, até crescerem. Mas já que me é permitido pedir, que ela não seja uma dessas crianças. Que saiba dizer “não” quando não quer alguma coisa, que não tenha de fazer algo que a deixe desconfortável só para não ser diferente.
Não quero que a minha filha seja infeliz.
Que tenha problemas de dinheiro. Não quero que tenha problemas de saúde. Que tenha azar ao amor. Que tenha de viver num ambiente de violência. Não quero que seja maltratada nem maltrate os outros. Nem que seja tão desprendida que não dê valor à família e aos amigos. Não quero que seja preguiçosa, na escola nem na vida. E não quero que seja amarga nem que afaste os outros por ter um coração de pedra.
Não quero.
Não gostava.
E sei muito bem que nem tudo será como eu gostaria.
Estou aqui para ir aprendendo com ela as muitas lições que ainda me esperam. Para lhe ir iluminando os passos que me forem possíveis. E para lhe responder a algumas perguntas e para a deixar encontrar respostas para muitas outras. Para, por vezes, não a compreender. E para que ela, algumas vezes, também não me compreenda. Para respeitar o seu tempo, as suas ausências, o seu percurso. E também para às vezes ter de me retrair para não a proteger em demasia. Para outras vezes me martirizar porque a deveria ter protegido mais.
Há muita coisa que não quero para a minha filha.
Mas há muito mais que quero, na positiva. Porque é assim que a vejo, sempre com um sorriso nos lábios, mesmo quando deveria estar a fazer beicinho.
Porque é essa a vida que quero para ela, cheia de coisas boas, bons sentimentos, boas escolhas.
Para que quando as coisas não correrem exactamente como ela desejaria haja um equilíbrio saudável que faça a sua vida valer a pena ser vivida.
Todos os dias.
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!
1 comentário
Amei, simplesmente!