Depois das aulas de Aikido, em conversa com uma aluna estudante finalista do secundário, fiquei a saber que o Director da escola onde anda cumpria todos os anos, no início do ano lectivo, um ritual de entrega de diplomas aos melhores alunos do ano anterior. Ao que parece, faz um périplo pelas várias salas, entrega um diploma a cada um dos distinguidos e chama-os para a frente da turma para uma pequena conversa. Calculo que lhes comunique o orgulho que a escola tem em ter alunos assim e faz-lhes algumas perguntas. À minha aluna, que colecciona este género de diplomas, calhou recentemente esta pérola:
— Então, diz-nos lá: qual é a tua receita para o sucesso?
Conhecendo-a muito bem, só posso imaginar a vontade que teve de rapidamente desaparecer dali. Também eu teria, embora não tivesse nunca corrido o risco de receber um diploma.
Para aquele director, e suponho que para muitíssimos mais, as crianças e jovens que ganham este tipo de distinção são um exemplo para as outras. Só assim faz sentido que as distingam, em primeiro lugar, e que essa distinção seja consumada diante de todos os colegas. Se a minha aluna tivesse feito ali uma pequena palestra acerca da “receita para o sucesso”, teria seguramente sido uma inspiração para turma. A pergunta que o Director lhe fez é a expressão perfeita de uma certa concepção contemporânea de escola e de sociedade.
Para um sistema de ensino que aceita e encoraja este tipo de prática, o acontecimento atrás descrito é um incentivo para todos trabalharem afincadamente e, se possível, um dia serem “os melhores” e receberem também um diploma. A sociedade precisa de gente preparada para competir e gente bem preparada para a competição será obviamente o campo onde se colherão os empreendedores do futuro. O factor que permitirá distinguir os melhores? O mérito de cada um.
E o que será então o mérito? (Neste caso nas escolas que é o que me interessa por agora.)
Pelo que consigo perceber, as distinções por diplomas, por quadros de honra ou pelas duas, são maioritariamente baseadas nas notas. Nunca ouvi falar do quadro para os alunos que mais ajudaram os colegas ou de diplomas para os alunos mais contribuíram para o bom ambiente nas instalações da escola. Não quer dizer que não haja, mas são certamente raridades. Para o nosso sistema de ensino, portanto, o que a escola deve geralmente distinguir é a capacidade dos alunos de obter boas notas. O seu objectivo será, mais do que formar cidadãos válidos e dotados de ferramentas para enfrentar o futuro, promover e desenvolver o raciocínio lógico, a capacidade de concentração ou a memorização. Os alunos assim formados, proverão a sociedade daquilo que ela mais precisa: gente preparada para integrar o mercado de trabalho e contribuir para o bom funcionamento da economia.
Ora, nem a sociedade precisa apenas de cidadãos preparados para os desafios do empreendedorismo, embora precise de alguns, nem o dito mérito me parece ser critério que se use para o que quer que seja. Porquê? Porque não é possível definir uma escala de mérito igual para todos, nem nos critérios de medida nem nos de qualidade.
Logo à partida, parece-me impossível dizer que um aluno que tem uma média de 18 mas não mostra grandes capacidade de sociabilização tem mais mérito que um aluno que, por exemplo, mostra sistematicamente uma preocupação com o bem estar do grupo mas tem média de 13. A sociedade precisará mais de alguém com características individualistas mas muito trabalhador do que de alguém com menos capacidade de trabalho mas com preocupações dirigidas para o grupo? Precisa, evidentemente, de todos os cidadãos que de uma ou outra forma contribuam para o bem-estar geral, seja essa contribuição através de uma empresa bem gerida, de trabalho comunitário ou da expressão cultural.
E depois, como será possível distinguir entre o mérito de dois jovens nascidos em ambientes sociais muito distintos? Como comprar o mérito de uma excelente nota de um aluno nascido numa família da classe média, com uma vida confortável, com a nota média de uma criança de um meio pobre? Tudo isto são quase lugares comuns e no entanto, persiste-se no erro.
O mérito é um critério desajustado e, mesmo, pernicioso. Não só não é possível de definir e, logo, com ele operar objectivamente, como se propõe medir da mesma forma aquilo que é diferente. As conclusões baseadas no suposto bom uso deste critério arriscam-se pois a serem erradas, ou discriminatórias, ou ambas.
O mérito assenta num pressuposto falso: o de que se tivermos objectivos definidos, vontade e método de trabalho, conseguiremos ter sucesso. É um mito contemporâneo que tem tanto de falso como de genericamente aceite. Seja no comentário político, na opinião económica ou em certas formas de espiritualidade barata muito difundidas, é geralmente ponto assente que se quisermos mesmo havemos de conseguir. O mérito é por isso eticamente perigoso. Se aceitamos que quem quer consegue, teremos que aceitar que quem não conseguiu foi porque não quis. O eventual fracasso será pois responsabilidade de quem fracassou o que não deixará lugar para a má consciência ou para o benefício da compreensão de quem o rodeia.
A escola tem que ser cada vez mais orientada para a formação de indivíduos com capacidade para enfrentar os desafios que a vida trará e esses desafios não são só os da economia ou os do “mundo do trabalho” o que quer que isso seja. O ser-humano não se define pela capacidade de produzir, como não se define pela capacidade de consumir. Tem muitas outras dimensões e não deve ser a escola (veiculando a mentalidade vigente) a decidir que há uma só forma de preparar cidadãos válidos. Há muitas e cada vez há mais gente a pensar em novas formas de ensinar e, logo, de avaliar. Quando um dia tivermos uma escola dedicada a descobrir o que cada um faz melhor e com mais vontade, sem promover falsas hierarquias em relação ao que se estuda e como se estuda, estou certo que os quadros de honra e os diplomas de mérito deixarão de existir.
Ainda bem.
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