«Estas criancinhas vão ser adultos insuportáveis», disse a senhora no seu melhor fato de domingo, com uma expressão de “nojo” no rosto, enquanto rematava para outra amiga, igual menos no tom do tecido do fato, com quem segundos antes falava sobre a missa de onde acabavam de sair.
A criancinha, no caso, era a minha. E estava entretida com um brinquedo para cães, daqueles que se apertam e chiam. É chato, eu sei. Eu própria estava a chamar-lhe à atenção pela terceira vez para que parasse, coisa que se não acontecesse me faria tomar medidas. Mas tenho de ter a tolerância de pensar que tenho comigo uma criança de quase três anos que no supermercado não tem muito com que se entreter e se vê um brinquedo, brinca. Porque é criança.
Fiquei, na altura, bastante sentida com a afirmação da senhora. Não sou pessoa de responder, odeio tudo o que é confrontos e conflitos, mas se ela não tivesse acelerado o passo, como cobardemente fez, teria certamente ouvido a minha resposta, que me fugiu dos lábios num tom bastante mais baixo do que ela merecia: “insuportável como a senhora?”.
Como disse há umas linhas a senhora tinha acabado de sair da missa. Era toda ela elegância e educação. Pois de pouco adianta ir à missa se cá fora não se tem em consideração os outros, se lança a primeira pedra e se julga só porque sente superior. Que deselegante foi aquela afirmação. Que pouco “bem”. Que desrespeitosa. Jamais a teria dito a um adulto.
Tentei imaginar os filhos da dita senhora, todos a andarem em passo acertado uns com os outros, as golas cheias de goma e sem um único vinco, crianças que ficam caladas e de costas direitas independentemente do contexto, crianças que são mini adultos. Em suma, pequenos robots.
Mas depois percebi que não era certamente esse o caso. Eu própria fui uma criança bem-comportada e no meu vestido de roda subia à árvore da igreja e fazia arranhões nos joelhos e surrava os sapatos. Também eu corria pela rua, rindo alto. Também eu era criança.
A senhora ter-se-á provavelmente esquecido de que os seus filhos foram um dia crianças. Que os netos e bisnetos falam, comunicam como sabem, muitas vezes têm comportamentos que nós, os adultos, gostaríamos que fossem outros. Quem sabe se nunca foi ao supermercado com os filhos porque os deixava com a criada em casa. Se nunca foi a um restaurante para os meninos não falarem entre si e “incomodarem” quem está à volta.
Também eu gosto de sossego e silêncio. Também eu às vezes sou confrontada com crianças que se portam pior do que o desejável e quantas vezes esse comportamento é alheio à vontade e, pasme-se, educação que os pais lhes dão. Sou tolerante, acho que é preciso termos calma e não julgarmos as pessoas. Não julgo, não gosto de ser julgada.
Lembrei-me, enquanto escrevia estas linhas, da história do menino autista no restaurante que a empregada queria insistentemente que se comportasse ou todos (pais e irmãos) teriam de sair. Que mundo é este em que não conseguimos dar espaço às pessoas?
Se a senhora em vez de fugir tivesse ficado a fazer as suas compras calmamente teria visto como me baixei ao nível da minha filha e lhe expliquei por que motivo não podia continuar a apertar a galinha de borracha, por mais divertido que estivesse a ser para ela. E ela parou. Para passados alguns minutos estar noutras tropelias, naturais da sua idade e razão pela qual raramente a tenho comigo nas compras sem ser sentada no carrinho – enquanto ainda dá.
Eu tive de ouvir os comentários pouco católicos que essa senhora estava a fazer sobre o que se passou na missa (shame on you, miss!) e depois sobre a minha filha.
Aqui fica uma novidade: crianças sossegadas não são garantia de adultos calmos, tranquilos ou educados.
Muitos dos adultos “insuportáveis” que conheço tiveram mães que apesar das aparências se achavam no direito de dizer em voz alta cobras e lagartos sobre os que estavam à sua volta, legitimando, assim, que os filhos crescessem para fazer exactamente o mesmo.
As crianças que brincam, sobem às árvores e se sujam também sabem comportar-se quando o momento o pede. Também sabem trocar as leggings pelos vestidos de folhos e dar a mão enquanto ouvem o que os adultos dizem.
As crianças, se fizermos bem o nosso trabalho, conseguirão perceber, quando tiverem idade para isso, que há lugar para tudo.
E sendo livres, sendo-lhes permitido serem crianças para aprenderem em que momento ser de uma forma ou outra, serão adultos que mais facilmente expressarão os seus sentimentos e saberão lidar com quem os rodeia.
Espero passar muitas coisas à minha filha.
Espero que ela seja boa com ela e com os outros.
Espero que ela nunca olhe para os filhos de alguém e tenha a cobardia de lhe pôr um rótulo e de lhe dar uma sentença tão triste como já lhe deram a ela.
Logo à minha Mariana, que de insuportável tem pouco.
imagem@weheartit
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Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!