E depois dos 50 anos…
Há 50 anos (meio século, para causar mais impacto) começou a nossa democracia – a nossa liberdade.
Se em alguns locais do país não se notou um regime ditatorial e sem qualquer tipo de restrição ou proibição, na grande maioria do resto do país, grassava a miséria, a fome, o medo, a vergonha, a total ausência de direitos e o desconhecimento de que estes existiam – ainda que fosse noutros países.
Há 50 anos, a pessoa com deficiência era a vergonha, o horror, o castigo divino, a desgraça de todos os envolvidos e era escondida da sociedade. Já referi noutros textos, tive um vizinho cego que nasceu em meados dos anos 50 e nunca saiu de casa – nunca – e só sabíamos da sua existência porque o bairro era pequeno e ele, às vezes, ousava vir ao pequeno pátio de casa que dava para a rua. Nunca foi à escola, nunca foi ao centro da vila, nunca teve amigos, nunca foi à missa, nunca nada. E assim morreu: sem sair de casa, sem ser reconhecido pela sociedade e sem nunca ter podido usufruir dos seus direitos pós-25 de abril porque a sua família parou no tempo da ditadura.
Se censos houvesse na altura, a designação da deficiência era insultuosa e castradora logo na origem, sem se saber ao certo de que condição se tratava ou se haveria possibilidade de tratamento. Nunca se soube – nem se saberá – quantas pessoas com deficiência (física, mental ou neurológica) houve em Portugal nessa altura – diagnósticos à parte.
Sou – as minhas filhas são – portuguesas pós-25 de abril mas, também somos europeias e cidadãs de uma sociedade mundial. E, como tal, há direitos que são universais e que nos abrangem – a nós e a outros seres que vivam nos extremos do mundo. Posso começar na Declaração Universal dos Direitos Humanos e terminar na própria Constituição da República Portuguesa. Temos direitos inalienáveis e que devem ser respeitados. E somos livres de poder usufruir deles.
50 anos depois da recuperação da nossa liberdade, sinto-a frágil e ameaçada.
Há um cheiro a bafio e a mofo no ar, soam trombetas conservadoras que defendem um retrocesso inacreditável e, enquanto mulher e indivíduo neurodivergente, temo que o saudosismo perigoso e desconhecido do antigamente venha prejudicar o natural avanço social, legal, de direito, constitucional e até científico que impulsiona a compreensão da diferença e o papel de todos no mundo – todos mesmo, até o da pessoa com deficiência.
Assumir que a pessoa com deficiência é menos porque é uma pessoa com deficiência é errado e castrador.
A designação de “deficiência” é um espetro imenso e variado e, tal como acontece com os supostos (neuro)típicos, tem um alcance enorme que vai do mais severo e grave ao mais funcional e com necessidade de menor suporte. Todos os seres humanos possuem competências diferentes, em quantidades, com qualidades, com suportes diferentes, com aplicações diferentes, e isso não invalida o seu papel na sociedade nem o seu lugar no mundo nem os seus direitos enquanto cidadãos.
O meu 25 de abril – enquanto mulher (e neurodiversa) nascida nos anos 80 e mãe de meninas neurodiversas nascidas nos anos 00 do século seguinte – tem um valor de liberdade que talvez seja diferente para os restantes. A mim sabe-me a liberdade de vida sem medo de acabar num buraco, escondida pelos meus pais e ostracizada pelas pessoas que me rodeiam; permite-me lutar pelos meus direitos e pelos direitos das minhas filhas; permite-me ser mãe e ser professora sem prejuízo da minha família ou dos meus alunos; permite-me ter acesso a informação, formação, educação e poder partilhar esses conhecimentos, valores, ideologias com os que me rodeiam sem impor o meu ponto de vista; permite-me ser independente na minha forma de viver sem prejudicar quem me rodeia; permite-me ser mulher e passar o testemunho às minhas mulheres sem que elas percam de vista o caminho árduo que foi desbravado até este ponto, o quão frágil é este caminho e o quanto custa mantê-lo limpo de influências nefastas e extremas, como é importante ter uma voz ativa que proteja as nossas conquistas e permita a natural evolução social, legal; permite-me (man)ter um lugar na sociedade, sem esquecer o passado mas com o olhar no futuro.
50 anos depois, estou muito grata pela luta que nos permitiu chegar aqui.
50 anos depois, porém, tenho medo do que nos aguardam os anos seguintes.
50 anos depois, eu desejo que as minhas filhas nunca percam os direitos que as dignificam e as tornam cidadãs plenas.
50 anos depois, a luta pela inclusão – em especial, pela inclusão da pessoa com deficiência – continua e não pode parar.
50 anos depois, a liberdade é frágil e precisa muito de ser cuidada, acarinhada, destacada, celebrada, amada e de luta constante por si.
50 anos depois, o 25 de abril (e tudo o que se seguiu) é também tudo isto.
O esforço de manter uma vida normal em tempos difíceis, a vários níveis… Em suma, uma aventura vivida a 4.