
E depois do duplo diagnóstico de Autismo? O que eu gostaria que me tivessem dito
E depois do duplo diagnóstico de Autismo? O que eu gostaria que me tivessem dito
Já passámos por tanta tanta coisa, já vivemos tantas coisas, já experienciámos tantas situações, já chorámos e rimos tanto, já aprendemos tanto…
Mas, ainda assim, há algumas coisas que eu gostaria de ter ouvido em 2010 e não ouvi. Coisas que tivemos de descobrir por nós mesmos.
Quando soube que estava grávida de gémeos e tinha 3 bolsas, na maternidade disseram que poderiam encaminhar-me para uma psicóloga, caso precisasse de apoio. Recusei, estava assustada mas feliz, apesar de tudo. Quando soube que as piolhas tinham uma Perturbação do Espectro do Autismo, não só estava sozinha (pois achei que seria uma mera consulta) como não houve ninguém para me ajudar, apoiar, nem sequer explicar o que diabo era uma PEA…
A ajuda psicológica nunca surgiu.
Deixo algumas das coisas que muita gente deveria ter-me dito em vez das habituais tretas do “ai mas não parece autista”, “mas são tão bonitas” ou “mas são tão inteligentes” e outras pérolas do género, incluindo ” a culpa é vossa”.
O que me fez muita falta ouvir:
1. Antes de mais, a ter que atribuir culpas, o autismo não é culpa vossa.
Genético ou ambiental, hereditário ou circunstancial, não é culpa dos pais nem das crianças. Não se culpabilizem nem dispendam energia a pensar nisto pois vão precisar e muito dela em áreas bem mais importantes para o desenvolvimento das vossas crianças.
2. Mantenham uma vida dentro dos parâmetros normais, mas adaptem-se.
Ou seja, se antes de começarem a notar pequenos sinais de que algo estava errado, iam de férias para a praia ou iam ao restaurante 2 vezes por semana, mantenham. Independentemente de os vossos filhos entenderem ou não o que vocês lhes explicam, insistam e levem as crianças convosco. Haverá crises, haverá olhares parvos e comentários parvos, haverá momentos negros mas tudo compensará. Não há nada melhor do que sair e manter uma vida dentro de parâmetros normais para poder ensinar determinadas competências sociais que não se aprendem nas terapias nem na escola. Adaptem-se. Se antes iam a um restaurante com reservas porque estava sempre cheio, experimentem algo mais calmo noutra zona. Mas mantenham.
3. Terapia – em especial a da fala – para ontem.
As terapias são essenciais e o núcleo sobre o qual tudo deve girar. Agilizem a vossa vida, estabeleçam prioridades, cortem despesas se for necessário, não se coibam de questionar qualquer que seja o profissional que trabalhe com os vossos filhos, assistam à sessões sempre que possível, aprendam muito, estudem muito e peçam ajuda para reproduzir em casa no sentido de fazer um prolongamento das sessões, peçam TPC sem receios. Confiem na vossa intuição, escolham o técnico em quem mais confiem, questionem metodologias, estudem, leiam muito e debatam pontos de vista com os técnicos. Eles vão certamente ajudar.
4. Sintonia entre todos os intervenientes
É extremamente importante que todos falem a mesma língua, ou seja, que todos estejam em sintonia para que não haja discrepâncias entre metodologias e abordagens. Se na terapia da fala se começa a abordagem à linguagem através de gestos que vocês já aprenderam, ensinem também os mesmos gestos à restante família e amigos, na creche/jardim de infância, etc. Dá trabalho mas compensa.
5. A utilização de gestos ou de sistemas de comunicação visuais não é sinónimo de eternidade.
Por cá, as piolhas começaram com uma abordagem Makaton e PEC (Picture Exchange Communication) até desenvolverem a linguagem necessária para comunicar sem apoios ou muletas. Pode demorar, pode ser necessário conjugar imagens e linguagem verbal durante muito tempo mas não desmotivem nem achem que será algo para o resto da vida. Mas se tal acontecer também não é nenhuma tragédia. Recordemo-nos que muita da nossa linguagem informativa funciona por imagens (código de condução – sinais de trânsito, códigos de cores para daltonismo, etc.) e outra até é por caracteres (programação em computadores, por exemplo).
6. A evolução e o desenvolvimento levam tempo.
Às vezes, terão picos de evolução extremamente rápidos e ficarão surpreendidos com a quantidade de coisas que já conseguem fazer/dizer/aguentar; outras vezes, parece não haver evolução alguma e começamos a questionar se o que estamos a fazer até ao momento valerá a pena ou não. Por muito difícil e doloroso que seja, aguardem. Muitas das etapas que esperamos ver alcançadas pelos nossos filhos não dependem só das terapias mas do seu próprio desenvolvimento cognitivo e maturidade neurológica. É absolutamente normal desenhar um S ao contrário com 6 anos, por exemplo, mas demos-lhes tempo de amadurecer para que esse S passe para a sua posição correta.
7. A decisão de dar ou não medicação aos vossos filhos é só vossa.
MAS… ouçam o que vos dizem os especialistas de saúde, cruzem informação entre médicos e técnicos, analisem friamente o vosso caso e verifiquem se ganharão qualidade de vida/evolução da criança/redução de níveis de ansiedade/agressão/etc. Mais uma vez, tal como determinadas abordagens, a medicação não é algo que fica para toda a vida. As piolhas tomaram risperidona em doses mínimas mas as necessárias para que tivessem qualidade de vida (fim de ansiedade e transtornos intestinais, ausência de autoagressão, maior concentração, períodos de atenção e foco maiores) MAS já não tomam absolutamente nada (nem sequer vitaminas) desde outubro de 2016. Não se fiem em tudo o que leem no dr google: falem com outros pais que tenham crianças mais velhas no espectro, peçam segundas e terceiras opiniões e confiem na vossa intuição.
8. Não desesperem com a abismável montanha de informação que vão encontrar e não façam dos vossos filhos cobaias.
Por exemplo, um cão pode ser um aliado essencial ao desenvolvimento de uma criança com autismo mas se o seu filho em particular detesta ou tem medo de cães,nunca vai resultar. O que resulta num caso para uma criança no espectro pode não resultar para outra dentro desse mesmo espectro. Conheça o seu filho, para além do autismo. É uma criança inteligente, viva, ativa, enérgica? Bora brincar para a rua mesmo que isso implique andar a correr atrás dela ou subir ao mesmo escorrega 50 vezes. É uma criança mais apática e isolada? Vamos apostar nas novas tecnologias e treinar vocabulário e linguagem num jogo interativo. Ou vamos rodar peças de legos e imitar os nossos filhos e as suas estereotipias. Um dia conseguiremos trazê-los até nós, e eles farão o que estivermos a fazer, como montar esses legos que ontem andávamos a rodar.
9. Afastem-se de pessoas tóxicas.
Inicialmente vai custar, depois será instintivo. A vossa vida já é complicada q.b. sem que precisem de alguém a deitar-vos abaixo ou a diminuir a vossa dor e o vosso trabalho. E se for alguém da família? Vale o mesmo. Os avós paternos das piolhas já não estão com elas desde Maio de 2015, tirando 10 minutos em novembro de 2017. Não sabem lidar com elas e nunca quiseram aprender a entendê-las, escusaram-se a ouvir-nos e até nos culpabilizaram pelo autismo delas. As piolhas não sentem a falta de quem não se esforça para estar com elas; as piolhas sentem sim falta de quem as aceite e goste delas como são. Não pensem que ficarão sem amigos ou com uma vida social lastimável: quem fica é porque merece ficar e vos conhece para além disso tudo. Chama-se a isto seleção natural.
10. A vossa família – vocês – são quem melhor conhece os vossos filhos.
Não deixem que vos acusem de má-educação ou de negligência ou de sei lá mais o quê só porque naquele dia, no pior momento do vosso filho, um estranho qualquer decidiu arrotar uma posta de pescada para o ar. Cair-lhe-à em cima certamente. Estudem, informem-se dos direitos dos vossos filhos. Peçam ajuda a pais que já tenham passado por situações menos agradáveis. Falem com os técnicos da assistência social nos hospitais centrais. Leiam muito bem qualquer documento relativo à educação ou saúde dos vossos filhos. Organizem tudo em pastas que tenham sempre à mão.
Não imaginam a quantidade de vezes que já tive de recorrer a esses ficheiros para impedir que cortassem horas de terapia ou corrigir falhas em documentos escolares. As nossas crianças não têm mais direitos que as outras nem “roubam” direitos a ninguém mas temos que ter a certeza de que são cumpridos. E muitas vezes não são.
11. Não tenham medo de agir.
É suposto termos aliados ao desenvolvimento pleno dos nossos filhos como a escola ou o hospital. Às vezes, há falhas. É essencial perceber o que se passa e agir em conformidade, mesmo que isso passe por um louvor a quem apoiou e protegeu e ajudou os nossos filhos ou uma queixa contra quem desrespeitou direitos básicos e inalienáveis dos nossos filhos. Esqueçam a velha mentalidade do “tomar de ponta”. O desenvolvimento saudável dos vossos filhos depende da ação conjunta e da linguagem comum de todos os intervenientes na vida deles.
12. Consultas sim, sempre.
São importantes mesmo que saiam de lá com um sabor amargo na boca ou que achem que não aprenderam nada. Há sempre algo importante a discutir, exames ou avaliações a ponderar, uma ou outra estratégia a definir, uma evolução a traçar. Sejam estáveis e confiem. Procurem um especialista até confiarem, se for esse o caso, e mantenham uma rotina. Aqui costumamos ir ao Hospital Pediátrico às consultas de autismo e neurodesenvolvimento de 6 em 6 meses, aproximadamente. Nunca me coíbo de falar das minhas dúvidas, ânsias, desejos ou medos. Pode não resolver nada mas pode, ao mesmo tempo, ajudar muito a delinear um caminho.
13. Não desistam.
Não é fácil, nunca podemos tomar as coisas por garantidas. É injusto. Os nossos filhos têm de aprender até a brincar enquanto que aos filhos dos outros parece tudo fácil. É impossível não comparar. MAS não deixem que isso vos impeça de seguir em frente ou de continuar a trabalhar para que evoluam, para que falem espontaneamente e não ecolalicamente, etc. Irão ao fundo do poço muitas vezes mas mais vezes ainda subirão à superfície. Chorem muito e sempre que precisarem mas não deixem que o choro vos arraste para a apatia, não podem nem têm tempo para isso, porque os vossos filhos precisam de vocês.
14. Tirem tempo para vocês e para os vossos filhos.
Eles não estarão 24h convosco, por isso, quando eles estão na escola, durmam, trabalhem, saiam para um café, façam um desporto, vão mimar-se, etc. Não desistam de vocês porque precisam de energia e de motivação para continuar. Se está um dia de sol lindo, mesmo que fiquem cansados só com a ideia de sair e os piolhos até estão endiabrados, saiam. Sim, saiam. Vai fazer-vos bem mesmo que não corra muito bem. Mas, pelo menos, tentaram. Na próxima vez, correrá melhor.
15. Nem tudo é autismo.
Muitas vezes, são só os nossos filhos a serem parvos ou teimosos ou idiotas. É sempre difícil estabelecer a fronteira entre o que é um comportamento do autismo ou apenas uma parvoíce – ou até traços de personalidade. Mas, again, ninguém conhece os nossos filhos melhor que nós. Muitas vezes, eles estão apenas a ser crianças e a fazer os mesmos disparates que os outros fazem. Ou a puxar ao nosso mau feitio por eles herdado…
16. E, acima de tudo, arranjem tempo para brincar.
Nenhuma terapia do mundo vos pode ajudar se a vossa criança não tiver aquilo que qualquer criança precisa de ter: tempo para brincar. Mesmo que não saiba brincar da forma típica de outras crianças. Roda os legos? ‘Bora lá rodar também e começar a encaixar alguns. Riscar paredes é giro? ‘Bora para a garagem ou arrumo e rabiscar à vontade. Gosta de comer plasticina? ‘Bora fazer uma massa caseira com corantes naturais (sumo de beterraba para o vermelho, mirtilos/amoras esmagados para o azul, por exemplo) e fazemos plasticina que se pode moldar e comer. Pensem fora da caixa, inventem muito e vão ver que vai compensar e correr bem.
Para concluir, gostaria que me tivessem dito que iria ser muito doloroso e difícil. Que iria demorar algum tempo mas que chegaríamos longe (esta parte disseram-nos mas não nos explicaram como nem que podia demorar…).
Gostaria de ter tido alguém, profissional talvez, para me ouvir e não julgar…
Não há receitas infalíveis nem truques milagrosos.
Mas há vocês e todo um mundo para explorar e experimentar.
Vai correr bem.
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O esforço de manter uma vida normal em tempos difíceis, a vários níveis… Em suma, uma aventura vivida a 4.
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