As crianças não são feias, más, nem tão-pouco parvas
“Esta é má e fria, não gosta de ninguém” – foi assim que uma mãe descreveu a filha a uma amiga que acabara de encontrar. A menina, com pouco mais de 1 ano, estava sentada no carrinho e ignorava a amiga da mãe, desejando apenas continuar a brincar com um coelho de peluche que trazia na mão. A amiga da mãe tentava desvalorizar, referindo que as crianças são assim, mas a mãe continuava: “esta miúda é parva, nunca cumprimenta ninguém! Olha, Joana, és feia, não gosto de ti!“. Confesso-vos que fiquei incomodada ao ponto de sair disparada da loja e as palavras me terem ecoado na cabeça durante a tarde toda.
As crianças não são feias, más, nem tão-pouco parvas
Em primeiro lugar, ninguém é, as pessoas estão a ser!
Existe uma grande diferença entre “é” e “está a ser”:
- o “é” envolve rigidez, passa a mensagem de que será sempre assim e por isso não há possibilidade de mudança. Cria um rótulo definitivo de “és isto”. Esta expressão promove a rigidez cognitiva em que as pessoas analisam as situações em termos de tudo-ou-nada, não existe meio-termo;
- o “está a ser” transmite a ideia de que o comportamento depende das circunstâncias e que por isso pode alterar-se. Numa situação, em determinado contexto, és assim, noutra já poderás não o ser. Isto facilita a flexibilidade cognitiva (de pensamento), característica fundamental no bem-estar psicológico.
Mais, o “é” cria uma determinada expectativa de comportamento tanto na criança como nos outros. A criança sabe que esperam que seja, por exemplo, agressiva e por isso tenderá a reproduzir esse género de comportamentos. Os outros esperam ver agressividade na criança e por isso a sua atenção estará direcionada para isso. É a chamada atenção selectiva em que o nosso cérebro, para poupar recursos, procura informação que se encaixe naquilo que procuramos. Por exemplo, quando entramos numa loja em busca de um vestido vermelho, se nos perguntarem se existiam muitos vestidos azuis não iremos conseguir responder pois a nossa atenção foi canalizada apenas para a primeira cor.
Os comportamentos dos nossos filhos
Enquanto cuidadores existem comportamentos que consideramos mais e menos aceitáveis de acordo com as nossas crenças e aquilo que a sociedade defende. Reparem que comportamentos está a negrito pois é isso que está em causa, não a criança em si. Quando digo “já não gosto de ti” a uma criança que faz algo que considero menos adequado não estou a focar o seu comportamento, coloco-a integralmente em causa, o que abrange até as suas qualidades. Parece-vos justo?
E se os nossos companheiros dissessem que já não gostam de nós porque não lavámos a loiça do jantar?
E se a nossa mãe deixasse de nos amar devido à discussão que tivemos a semana passada? Repito: o que está em causa é o comportamento e podemos expressar o nosso desagrado relativamente a isso – “a mãe não gosta que te ponhas em cima da cadeira” – não em relação à criança em si.
Comunicar positivamente
Existem palavras cuja única função é magoar, nada se constrói com base nelas. “Feia, má, parva, burra” são apenas alguns exemplos de palavras que destroem a auto-estima de qualquer um, sobretudo quando proferidas por pessoas significativas cuja opinião é importante para nós. Além disso, são altamente subjectivas, difíceis de decifrar, e por isso em nada promovem a aprendizagem.
O que torna uma criança feia?
Que comportamentos levam a esse título? Será que a mensagem que queremos transmitir é que tem de se tornar bonita?
Sejamos objectivos no que queremos para que a criança se possa regular. “Não quero que estejas em cima da cadeira pois podes magoar-te, fico preocupada contigo“. Depois disto é fundamental apresentar uma alternativa para onde a criança possa canalizar a sua energia. Por exemplo, “Vamos descer da cadeira, podemos ir brincar a saltar do chão para o tapete”.
Os elogios podem e devem ser aplicados sempre que se justifique.
Noto que muitas vezes os pais passam grande parte do tempo a apontar os defeitos dos filhos em público. Eu própria já me senti tentada a fazê-lo apenas por estar habituada a que seja esse o registo. Novamente, remetendo para nós próprios, gostaríamos que o nosso companheiro encontrasse um amigo na rua e começasse a apontar os nossos defeitos? Por que o fazemos com aqueles que mais amamos?
Que estes momentos sirvam para desabafar, e aqui podem expressar-se algumas preocupações, mas sejam sobretudo uma oportunidade de reconhecimento público do valor que os nossos filhos têm, daquilo que mais gostamos neles. Como referi, estamos a criar expectativas e isso irá moldar o comportamento da criança, além de promover o seu auto-conceito (como se caracteriza) e a sua auto-estima (como valoriza as suas características).
Por último, as crianças (felizmente) não são mini-adultos!
Não esperem que uma criança prefira estar a interagir com uma desconhecida (no caso da amiga da mãe) do que com um brinquedo, não esperem que as crianças expressem afecto por encomenda (podem pedir, eu peço sempre que ela cumprimente as pessoas, mas sei que é natural que tal não aconteça), não ambicionem uma criança robótica que faz tudo que desejamos (se o faz hoje também o fará no futuro e aí já não terá tanta piada).
Percebam e respeitem a essência das vossas crianças, tal como elas aceitam diariamente a nossa.
imagem@tokkoro
A entrada no mundo da maternidade rapidamente se revelou menos “purpurino-brilhante” do que havia imaginado. Poderei ser uma mãe que se sente completa, com disponibilidade para a sua prol, se não cuidar de mim enquanto mulher? Poderei ser uma mulher feliz se não me sentir uma mãe livre?
3 comentários
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O que muitas vezes disse foi: gosto de ti mas nem sempre gosto das tuas atitudes
E muito bem. Corrigir o comportamento sem ofender a criança