Filho lobo Pai cordeiro
Alguma vez sentiu que o seu filho tende a estar no comando do seu dia e que já não consegue fazê-lo respeitar os seus pedidos, sem que uma birra ou capricho aconteça?
Alguma vez se perguntou como é que as escolas conseguem gerir bem tantas crianças pequenas e fazer com que comam, durmam, se vistam e se comportem como seres perfeitamente autónomos, bastante diferentes dos que tem em casa?
É verdade. Todos sabemos que as coisas podem tornar-se um pouco difíceis de gerir lá em casa. Muitas vezes isto acontece por uma razão simples: falta energia de um lado – o seu, e excesso do outro – o deles. O resultado é quase sempre desgastante: ou já não encontra forças para resistir e abre mão da sua vontade, ou explode (grita, bate com a porta, fala com agressividade). Aconteça o que acontecer, arrepende-se sempre. Acima de tudo não compreende porque é que depois um dia inteiro a fazer o que tem de ser feito, ainda tem de lidar com o doutor minúsculo a impor-lhe leis ao serão.
Voltemos ao tema das escolas – queremos ajudar. As boas escolas e os bons professores sabem como manter o controlo de muitas crianças iguais à sua, sem com isso colocarem em causa a trilogia de ouro nas relações entre adultos e crianças: afeto, respeito e admiração.
Creio que temos boas notícias. Pelo que conhecemos das melhores práticas, é possível que a causa de todos os seus problemas se prenda com uma frase feita: está a pecar por excesso.
Fala demais, espera demais, compra presentes demais, dá explicações a mais, promete o que não pode, sacrifica-se em demasia.
E mesmo que tudo isso aconteça por uma razão maior (ama demais), colocar-se na posição de cordeiro só vai servir para que se transforme num adulto amargurado e cansado, sem combustível para educar. Lembre-se sempre disto: os pais devem ser líderes fortes, poderosos estrategas. Filho lobo, Pai cordeiro.
É muito importante que esta mensagem o conduza a uma reflexão cuidada. Se muitos dos adultos que conheço assistissem a uma gravação do seu comportamento subserviente com os filhos, diriam: Aquele não sou eu! – e continuariam a negá-lo até à morte, alegariam que foi tudo uma montagem, instigariam a própria mãe a comprovar a existência do irmão gémeo cujo filho é um tirano.
Agora, certifique-se que o seu sentido de humor está em ON, porque vamos falar dos filhos dos outros, esses mal-educados. Podemos assegurar que não estamos a falar do seu filho, porque se ele na escola é perfeitamente autónomo, não há razão para preocupações. Há coisas que os miúdos dos outros fazem e dizem com uma fluência inacreditável, especialmente se olhadas à luz da reação dos coitados dos pais. Eis alguns estudos de caso:
Caso 1 – A sede.
Criança deitada no sofá a ver desenhos animados sente sede, após triunfar o duelo pela posse dos canais de televisão com o pai, que uma vez derrotado, se retirou para o quarto:
–Tenho seeeede! Quero ááááágua! Ó mãããããae!
A mãe apressa-se a terminar o banho, veste-se ainda meia húmida e leva a água ao rapaz. Quando se aproxima, o filho bebe um gole e diz:
– Não quero mais, está muito fria. Sai da frente que eu quero ver!
Caso 2 – O jogo.
O pai está sentado na esplanada, relaxado a ler enquanto a criança joga à bola. Sem aviso, sente um pé pisar-lhe a coxa. O filho ordena:
– Cordões!
Solícito, o pai aperta os cordões com dois nós para maior segurança. Sacode as calças. Lembra o pequeno que é melhor vestir o casaco, ao que ele responde com um esticar de braços. O pai veste-lho e volta à leitura. O filho pega na bola e afasta-se.
Caso 3 – O filme.
Hora de almoço dramática. A criança protesta dizendo comida da escola é muito melhor, que a barriga dói, que sente muito sono. Diz que a sopa de casa está mal passada, que a carne é muito dura e os legumes cheiram mal. A cada comentário os pais respondem com argumentos válidos e bem estruturados e aliciam a criança com o novo filme que combinaram ver após o almoço. A criança contrapõe sempre. Depois de muitas tentativas sem sucesso, alguém acaba por estrelar um ovo para abreviar o momento, reforçando a sobremesa para que a criança não sinta fome. Terminada a longa refeição, tudo passa, e a família reúne-se na sala para ver o filme.
Caso 4 – O peso.
A mãe estacionou em segunda fila já após o toque para sair. Entra na escola e gesticula para que a filha venha ao seu encontro. A criança vê, mas parece não reagir. Para ganhar tempo, a mãe vai buscar a mochila da escola, a mochila do lanche, o casaco e o guarda-chuva. Volta a chamar a criança que responde a meio da corrida:
– Espera, já vou!
Toca o telemóvel. A mãe suspira e pousa a mercadoria para resolver um assunto de trabalho que ficou pendente. A meio, é interrompida:
– Despacha-te que eu quero ir para casa, estou cheia de fome mãe, anda lá!
Faz um gesto para a criança aguardar com a mão. Buzinam para que retire o carro mal estacionado.
– Agora vou ficar aqui todo o dia enquanto tu falas ao telefone? Agora já não está com pressa, passou-se!
Terminada a chamada, a mãe veste o casaco à criança e pede-lhe que ajude a levar uma mochila, pois precisa de correr para ir tirar o carro.
– Não, leva tu, estou muito cansada.
A senhora carrega tudo sozinha. Com uma mochila a balançar no pulso, levanta a mão pesada e pede desculpas ao condutor. Abre a porta do carro, e enquanto a filha entra, guarda tudo na bagageira. Não parte sem antes colocar-lhe o cinto de segurança.
-Parece que é desta que vamos para casa.
Como ainda não recuperou o fôlego, e não se tratando de uma pergunta, a mãe decide ignorar.
Pensar que estes são casos reais é suficiente para colocar em OFF o sentido de humor, certo?
E porque é importante ser solidário com estes pais que só pensam estar a fazer o melhor para os seus filhos, partilhamos consigo as estratégias que os profissionais das melhores escolas usariam em situações semelhantes. Quando analisar, note como a maioria das práticas de ensino aposta numa distinção muito clara entre decisões de adultos e decisões de criança, e em como raramente se misturam as responsabilidades.
Repare como apostar na autonomia pode significar conquistar equilíbrio, tempo e espaço na relação com os mais pequenos. Tenha particularmente em conta como cada desfecho não significa amar menos as crianças, e como amar na medida certa, requer inteligência, consistência, e planeamento:
Solução 1 – A sede que ensina a beber.
Quando a criança diz precisar de água, o adulto responde que no momento está ocupado, e lembra que há garrafas pequenas de água em local acessível. À primeira oportunidade, o adulto elogia a criança por ter cumprido a tarefa e premeia-a, entregando-lhe um copo especial para guardar num local ao seu alcance, que pode usar daí em diante. Terminados os trinta minutos destinados à televisão, vão brincar juntos para o exterior.
Solução 2 – Jogar bem a bola.
No momento que a criança pousa o pé na perna do adulto, este pousa o livro como que em sinal de desaprovação e aguarda sereno que a criança regule o seu próprio comportamento, sem que seja preciso dizer-lhe como. Logo que o rapaz pousa o pé no chão, o adulto pega na bola e convida a criança a sentar-se para tentar apertar o cordão por si. Volta a pegar no livro não sem antes se mostrar disponível para ensiná-la, no caso de falhar várias tentativas. Não obstante o processo, dá-lhe um beijo e elogia-a assim que o cordão estiver apertado. Diz-lhe que vista o casaco. Devolve-lhe a bola.
Solução 3 – O filme certo.
Aos protestos da criança durante o almoço, o adulto responde apenas uma vez, usando um tom seguro. Esclarece que a refeição foi preparada de acordo com o que é necessário para que cresça saudável e que é importante que a coma em tempo útil para não se atrasar para ver o filme. Sempre que a criança voltar ao protesto, os adultos mudam de assunto, sem que no contexto surja a possibilidade de um prato opcional. Os adultos aguardam que a criança termine a sopa antes de avançarem para a refeição sólida e assim sucessivamente, desde que respeitando um intervalo de tempo razoável. Se tal não acontecer, terminam a refeição e vão para a sala ver o filme. A criança junta-se a eles quando terminar. Em caso de identificarem sintomas reais de sono, mau estar ou doença, os adultos podem mostrar-se flexíveis, explicando porquê.
Solução 4 – O peso desapareceu.
Logo que o adulto chega, esforça-se por manter contacto visual com a criança, sem se dirigir ela fisicamente. Quando consegue, gesticula para que venha ao seu encontro. Se lhe parecer que a criança está muito interessada na brincadeira, volta a gesticular para que perceba que pode brincar mais 1 minuto e posiciona-se de modo a observar a viatura mal estacionada. Quando se dá conta de um lugar livre por perto, sai para estacionar corretamente. Quando toca o telemóvel, avista a criança junto ao portão e pede-lhe para aguardar no interior. Atende. Quando regressa cumprimenta-a, pede-lhe para verificar se trouxe todos os seus pertences. Abre a bagageira e espera que a criança os guarde, ajudando com os objetos mais pesados.
Senta-se no lugar do condutor, coloca o cinto de segurança e só arranca assim que a criança fizer o mesmo. Explica durante o caminho porque é que não aguardou no interior da escola, destacando que é sempre complicado estacionar na zona, pelo que a criança deve manter-se ao portão após o toque de saída.
São mudanças subtis de atitude que fazem toda a diferença, não acha?
Optar auxiliar somente a criança naquilo que não é capaz de fazer sozinha, mostrar vontade de colaborar em vez de promover a dependência, influenciar mais por omissão do que por ação, é possível.
Os conselhos que por norma os pais ouvem antes de nascer um filho, ainda que bem-intencionados, podem ser bastante vazios de conteúdo, inúteis e desfasados da realidade. É verdade que é lindo ter um filho, é verdade que muitas coisas mudam, mas exatamente o que é que isso significa? Ninguém explica a um pai ou mãe inexperiente que ser um bom líder familiar é muitíssimo relevante para conseguir educar sem comprometer severamente o bem-estar dos mais novos e dos mais velhos. Um filho vai sofrer e fazer sofrer, se desde muito pequeno os pais não trabalharem a sua capacidade de o influenciar e de o orientar como um treinador a um atleta. Educar pode ser muito divertido, acredite.
Imagina-se a ler este último parágrafo a um amigo seu com uma criança difícil? Então guarde-o num lugar perto de si para usar quando for conveniente e considere que toda a cautela é pouca, para tratar um assunto tão delicado. Pense: é o filho dele mas podia ser o meu. E vai ver que tudo corre bem.
imagem@cathsheard.com
1 comentário
Interessante esse ponto de vista. O que fazer com escolas que não deixam as crianças sair para vir para o carro? É enfurecedor.