A Médica oncológica Fátima Cardoso, responsável da unidade de cancro da mama da Fundação Champalimaud, em entrevista revela que desde 2021 o cancro da mama é o cancro mais frequente de todos, apesar de não ser o que mata mais.
“Temos uma taxa de cura de cerca de 70%”
Em Portugal há cerca de 6500 novos casos de cancro da mama e 1500 mortes por ano, 1/3 dos doentes têm doença incurável, mas pouco se sabe quantos doentes existem com cancro avançado, devido às novas regras da confidencialidade que não permitem troca de informações entre bases de dados.
É maioritariamente uma doença feminina, mas 1% destes doentes são homens e sentem-se ainda “mais isolados” do que as mulheres. Para a oncologista a procura da vacina contra o cancro “é uma utopia”, a
maioria dos cancros não está associada a infeções, e por isso “vai ser difícil desenvolver” a vacina. Em cada 1000 gravidezes há um caso de cancro, mas é possível tratar bem a mãe sem ser preciso abortar.
Engravidar depois de ter cancro da mama não aumenta o risco de regresso da doença.
Que trabalho desenvolveu na área do cancro para a atribuição do prémio ABC Global Alliance em 2019?
[Fátima Cardoso] Foi pelo trabalho que tenho vindo a desenvolver nas últimas décadas relativamente ao cancro da mama avançado. É um grupo de doentes que se sente abandonado no meio da “onda rosa”, por ter necessidades e problemas diferentes, dado que se trata de um cancro da mama tratável, mas infelizmente ainda incurável. Chama-se avançado, metastático ou estádio IV a partir do momento em que a doença aparece noutros locais para além da mama e da axila. Pode ser diagnosticado já em estádio IV ou aparecer vários meses ou anos após um cancro da mama precoce. Mesmo nos casos em que o cancro da mama é diagnosticado precocemente e mesmo recebendo os melhores tratamentos que existem, em cerca de 20 a 30 por cento dos casos ocorre uma recidiva.
Já não é um cancro de mama?
[Fátima Cardoso] É um cancro da mama, mas já não é localizado, está espalhado com aquilo que se chama metástases, ou seja, pequenos filhos do tumor que têm a mesma origem, portanto são células do cancro da mama, que se espalham para outros órgãos. Os órgãos mais frequentes são o fígado, os pulmões, os ossos, os gânglios e o cérebro. Existem vários tratamentos eficazes, que são diferentes de acordo com o tipo de cancro da mama, mas infelizmente neste momento não existe cura.
Dessa população qual é a percentagem que existe em Portugal?
[Fátima Cardoso] Em termos de percentagem são cerca de 1/3 dos doentes, em termos de números não se sabe. Nem se sabe em Portugal, nem na maioria dos países. Esse é um dos grandes problemas, uma das nossas batalhas, não termos bons dados de quantos doentes com cancros metastáticos existem (cancro da mama ou outros cancros). Este problema acontece porque os registos oncológicos, o nosso por exemplo, registam o diagnóstico e a morte. Não registam se acontece alguma recidiva. Sabemos, por exemplo,
quantos cancros são diagnosticados por ano. Quantas pessoas morrem desse cancro. Sabemos também uma coisa que se chama prevalência, que significa quantas pessoas tiveram diagnóstico nos últimos 5 anos e ainda estão vivas, mas essas incluem as pessoas que tiveram diagnóstico, fizeram tratamento e agora estão bem (chamados sobreviventes) e as pessoas que tiveram uma recidiva.
E porque é que não existem esses dados?
[Fátima Cardoso] As pessoas mudam de lugar, às vezes até mudam de país, é difícil seguir a pessoa durante os vários anos. O cancro da mama pode recidivar, ou seja, re-aparecer, vários anos depois do primeiro diagnóstico. Precisaríamos de ter mecanismos de alerta para os registos oncológicos. Por exemplo, uma pessoa quando tem um cancro precoce é tratada com medicamentos muito específicos, durante um certo período, e depois deixa de os utilizar.
Se os voltar a utilizar vários anos depois deveria ser um sinal de alerta de que ou teve um diagnóstico de outro cancro ou teve uma recidiva. Seria uma forma de tentar perceber o que aconteceu com os doentes. Não é fácil, e nomeadamente as novas regras da confidencialidade não permitem troca de informações entre bases de dados e vêm comprometer ainda mais esse problema. Estamos a tentar resolver a nível mundial, mas implica investimento numa nova forma de fazer registos oncológicos.
Que permite fazer um melhor acompanhamento dos doentes…
[Fátima Cardoso] Se não se souber sequer a magnitude de um problema dificilmente conseguimos geri-lo bem. Mas podemos estimar que cerca de 1/3 dos doentes que têm cancro da mama acabam por ter uma recidiva e,
portanto, são números importantes. Em Portugal temos cerca de 6000 a 6500 novos casos de cancro da mama por ano e cerca de 1500 mortes. A prevalência, ou seja, pessoas com diagnóstico de cancro da mama nos últimos 5 anos e ainda vivas, são cerca de 27,000. A maioria destas pessoas são os sobreviventes de cancro da mama, mas aqui se incluem também os doentes com cancro metastático.
Os doentes com cancro da mama metastático vivem com uma doença que necessita sempre de alguma forma de tratamento. Portanto, é parecido com uma doença crónica, mas não é bem uma doença crónica, porque o tempo de vida com a doença não são décadas, são cerca de 3 a 5 anos, em média. Para lutar por melhores condições para os doentes com esta doença foi criada em 2016 a Aliança Global Contra o Cancro da Mama Avançado (ABC Global Alliance)
A maioria dos doentes são mulheres…
[Fátima Cardoso] Sim, 99% são mulheres e 1% são homens, que ainda se sentem mais isolados porque têm uma doença que é considerada uma doença feminina, mas os homens também podem ter cancro da mama.
Quais são as maiores inseguranças que as doentes lhe revelam?
[Fátima Cardoso] A principal angústia quando se ouve a palavra cancro é que é uma doença que pode levar à morte. Felizmente dentro de todos os cancros que existem, o cancro da mama é aquele que tem tido avanços muito substanciais desde os anos 90, em que vemos uma diminuição na mortalidade de uma forma muito acentuada. Apesar de haver mais casos, a mortalidade tem diminuído. Se falarmos numa forma global, incluindo todos os tipos de cancro da mama, temos uma taxa de cura de cerca de 70%. Mas quando vamos esmiuçar por subtipo e por estádio ao diagnóstico podemos alcançar uma taxa de cura de cerca 90% em alguns casos. O principal fator que determina a probabilidade de cura é o diagnóstico precoce, e é por isso que se fala tantas vezes em estar atento e procurar um médico logo aos primeiros sintomas.
Mas nem sempre os sintomas são identificáveis no cancro da mama?
[ Fátima Cardoso ] É verdade e é para esses casos que existe o rastreio, para detetar cancros da mama tão precoces que ainda não dão sintomas e assim têm taxas de cura altas. Em Portugal, o programa de rastreio é coordenado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro e é recomendado, em determinadas idades em que o cancro da mama é mais frequente, entre os 50 e os 70 anos.
Mas qualquer mulher de qualquer idade deve estar atenta ao seu organismo, se aparecer um sintoma deve recorrer imediatamente a ajuda médica para se poder realizar um diagnóstico precoce.
Consegue justificar porque é que há cada vez mais cancro da mama?
[ Fátima Cardoso ] É preciso explicar o que é o cancro. Por vezes falamos sobre o cancro como se fosse uma só doença. Mas o cancro são muitas doenças, e cada uma delas tem o seu comportamento diferente. Também é importante saber que o cancro não é uma agressão externa, por exemplo uma bactéria, ou um vírus, ou algo que nos infecta. As células malignas são células nossas que perdem certas capacidades e ganham outras. Ganham a capacidade de se dividirem sem controlo e de não morrerem. São células imortais, que vão crescendo, vão ocupando espaço, vão comprimindo os outros órgãos, e vão dando esses sintomas.
Porque é que isso acontece?
[ Fátima Cardoso ] Porque habitualmente essas células têm alterações nos seus genes que não conseguiram ser corrigidos pelo nosso sistema imunitário.
Que alterações são essas?
[ Fátima Cardoso ] O estilo de vida que temos hoje, no mundo ocidentalizado industrializado, faz com que as agressões às nossas células sejam cada vez mais frequentes, seja por poluição, seja por aquilo que comemos, que como sabe há sempre problemas ligados à contaminação da comida por variadíssimos problemas, seja também pela vida de stress.
Há estudos interessantes sobre a ligação do stress às doenças oncológicas. O estilo de vida que nós temos, tem com certeza um impacto muito grande no aumento de incidência de todos os cancros, e nomeadamente no cancro da mama, que se tornou desde o ano passado o cancro mais frequente de todos. Apesar de ser essencialmente um cancro do sexo feminino, quando consideramos todos os cancros juntos, o cancro da mama é, neste momento, o cancro com maior incidência. Não é o que tem maior mortalidade, por exemplo o cancro do pulmão e o cancro do pâncreas têm maior mortalidade.
Há já algum avanço significativo na vacina contra o cancro?
[ Fátima Cardoso ] Não, não existe. Querer encontrar uma vacina contra o cancro é uma utopia. Há muitos anos que se procura isso. Uma vacina ajuda o sistema imunitário a desenvolver anticorpos contra determinados organismos que são externos ao nosso organismo e que o nosso sistema imunitário identifica como externo, e que diz: isto aqui não devia estar. Por exemplo, a vacina para a Covid19 é uma vacina contra o vírus que ajuda a desenvolver anticorpos para matar o vírus. Relativamente às células tumorais, o nosso próprio sistema imunitário não as reconhece como estranhas, porque são nossas próprias células. Portanto, nunca será fácil desenvolver uma vacina contra o cancro.
E a vacina do cancro do colo do útero?
[ Fátima Cardoso ] Há algumas exceções, que são os cancros que estão associados a infeções por exemplo o cancro do colo do útero que é causado pelo vírus HPV.
Erradamente diz-se que existe uma vacina para o cancro do colo do útero, quando o que realmente existe é uma vacina contra o vírus HPV, que é uma das causas de cancro do colo do útero. A vacina vai impedir que se tenha a infeção. É a infeção crónica por esse vírus que pode levar à transformação maligna das células e ao cancro do colo do útero.
Eu pessoalmente tenho muitas dúvidas se alguma vez poderemos desenvolver uma vacina para aqueles que chamamos cancros sólidos complexos como são o cancro da mama, da próstata, mesmo cancro colo
rectal, ou o cancro do pulmão, dado que não existe uma causa infeciosa para esses tumores. Ao contrário do cancro do colo do útero, ou do cancro do estômago, por vezes associado a uma bactéria chamada helicobacterpylori e a outros cancros, nomeadamente hematológico podem estar ligados a outros vírus como a citomegalovírus, mas a maioria dos cancros não está associado a infeções. Não estando associado a infeções vai ser difícil desenvolver vacina.
Qual foi o caso mais complicado que apareceu de cancro da mama? Já apareceu alguma mãe, alguma mulher grávida?
[ Fátima Cardoso ] O cancro que é mais frequentemente diagnosticado durante a gravidez é o cancro da mama. Existem também alguns linfomas e leucemias.
E conseguem salvar a mãe e o bebé?
[ Fátima Cardoso ] Sim, é possível. No cancro da mama durante a gravidez há algumas mensagens que são críticas: é uma situação muito complexa implica experiência e multidisciplinaridade. Se alguma pessoa se encontrar nessa situação aquilo que deve procurar é ajuda num centro altamente especializado. O tratamento multidisciplinar tem de trazer para a discussão a situação da mãe, mas também a do bebé. Na maioria dos casos podemos tratar bem a mãe sem afetar o bebé e por isso não é necessário terminar a gravidez. Outra mensagem importante é que a ideia antiga de fazer o bebé nascer rapidamente para depois poder tratar a mãe está totalmente errada. Aquilo que é pior para o bebé é nascer prematuro, é o que está associado a mais alterações. O objetivo é tratar a mãe convenientemente até que o bebé possa nascer, de parto normal pelo menos às 37 semanas.
Que tratamentos podem ser feitos na gravidez?
[ Fátima Cardoso ] Podemos fazer cirurgia durante a gravidez e, podemos fazer quimioterapia a partir do segundo trimestre. No primeiro trimestre não é seguro fazer quimioterapia, mas no segundo e no terceiro trimestre a quimioterapia é segura e podemos fazê-lo. Não é possível por exemplo utilizar outras formas de tratamento, tais como os tratamentos biológicos nem a hormonoterapia, porque estes medicamentos são teratogénicos, ou seja, podem induzir malformações. É possível, por vezes, fazer radioterapia durante a gravidez. Mas para o cancro da mama raramente precisamos de o fazer, podemos sempre esperar para depois do parto. O objetivo é tratar a mãe o mais parecido possível como faríamos se ela não estivesse grávida até que o bebé possa nascer de uma forma natural.
Temos vários casos dos que chamamos “filhos da quimioterapia” ou “chemo-babies” que são os bebés cujas mães receberam quimioterapia quando estavam grávidas. Não quer dizer que corra sempre bem, porque o cancro da mama numa mulher jovem é habitualmente mais agressivo.
Quantos casos existem de mães grávidas?
[ Fátima Cardoso ] Felizmente é uma situação rara, acontece em cada 1000 gravidezes um caso de cancro. Um problema associado ao cancro na gravidez é o atraso no diagnóstico. Muitas vezes as alterações nas mamas das senhoras que estão grávidas não são visíveis ou não são valorizados. A mama está a preparar-se para depois amamentar e a consistência torna-se diferente. Aparecem alguns nódulos e é preciso os obstetras, os médicos de família, os ginecologistas estarem atentos, uma vez que nem sempre são alterações
normais.
Outra ideia errada é de que engravidar depois do cancro da mama não aumenta o risco de recidiva. Não é verdade. É possível engravidar depois de um diagnóstico e tratamento para um cancro da
mama, e a gravidez por si só não vai piorar o prognóstico.
Já se atingiu o acompanhamento pré-pandemia?
[ Fátima Cardoso ] Apesar de se ter recomeçado com o rastreio, é evidente que há um atraso a recuperar. Para as pessoas que tiveram um atraso no diagnóstico já não se pode recuperar, porque já se diagnosticou tarde. O que aconteceu durante a pandemia foi exatamente isso. Existem muitos casos avançados, não só porque parou o programa de rastreio, mas porque durante muito tempo, como certamente se lembram, os médicos de família ficaram assoberbados com as tarefas relacionadas com a Covid-19. Era muito difícil para qualquer pessoa que tivesse um sintoma conseguir uma consulta no centro de saúde e os médicos de família são essenciais para o diagnóstico precoce e para o rastreio. As verdadeiras consequências da
pandemia só vamos saber nos próximos anos. Estão feitas várias estimativas em que os efeitos da pandemia se vão prolongar no mínimo 5 ou 6 anos. Será a altura em que as pessoas que tiveram os casos diagnosticados mais tarde, terão mais recidivas e a mortalidade irá aumentar.
Por Marta Roque
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