Quando o corpo se torna um lugar de sofrimento
A doença crónica na criança traz alterações no dia-a-dia, com repercussões psicológicas como: angústia, sentimento de anormalidade em relação a outras crianças, culpa sobre os pais, ou mesmo depressão. Com efeito, toda a doença crónica, na criança ou no adulto, coloca questões psicológicas importantes que influenciam e também são influenciadas pelo somático (corpo).
Na doença crónica o corpo torna-se lugar de sofrimento e menos de prazer. É objecto de preocupação e vigilância constantes que implicam alterações de hábitos quotidianos e de qualidade de vida, impacto financeiro, social, escolar, ocupacional e, mais ansiogénico, eminência de morte.
Aquando do diagnóstico da doença, as crianças podem ter diferentes reacções:
– dissociam-se da doença no seu conjunto;
– dissociam-se do que está doente no seu corpo;
– revoltam-se contra a situação que estão a viver e recusam os cuidados (muitas vezes, em negação do seu estado de saúde);
– recebem a terapêutica passivamente, refugiando-se até no sono e mesmo na falta de acção;
– tornam-se mais dependentes dos pais e dos técnicos de saúde;
– assumem a doença, integrando tanto as causas como os efeitos e o respectivo tratamento.
O que de um modo geral se acaba por verificar é que todos estes mecanismos de defesa ou estratégias tendem a atenuar-se aos poucos e estas crianças acabam por encontrar um equilíbrio entre a aceitação do seu estado inevitável e a adaptação (o menos dependente possível), a um elemento novo.
Em termos cognitivos e afectivos verifica-se também empobrecimento da capacidade imaginativa e intelectualidade mais diminuída, o que deriva essencialmente de:
-maior agressividade e dependência por desejo de retorno à figura materna;
– a figura masculina (habitualmente identificada com a autoridade) tende a causar maior ansiedade e inibição na criança;
– relação menos concisa com a imagem corporal;
– incerteza relativamente ao futuro.
A primeira rede de acolhimento, de suporte e de alívio da dor, serão os pais. A criança esperará dos seus progenitores elos de segurança, presença física, amor, tolerância, capacidade de escuta, contenção para a sua angústia.
Então, é expectável que a doença crónica na criança atinja não só esta mas também a sua família. E surgem assim modificações e novas exigências no contexto familiar. Daí que a terapêutica deva prever as relações entre criança – família – técnicos de saúde.
Na criança, a doença crónica (seja ela qual for) pode ser sentida pelos pais como agressão, culpa e até potencial elemento reactivador de (outros) problemas pessoais. Decorre daqui, frequentemente, estados depressivos relacionados com essa decepção, auto acusação, falha narcísica (o bebé / criança imaginário para os pais é substituído pelo bebé / criança real comprometendo, nas suas crenças, a transgeracionalidade).
Igualmente no geral consideram-se as seguintes fases de adaptação psicológica à doença, por parte da família:
– negação da doença no momento do diagnóstico;
– desorganização da família e consequente necessidade de reajustamento familiar às novas rotinas;
– adaptação à doença e aos seus efeitos tendo em conta as características da doença, questões de doenças na família, idade da criança, características da sua personalidade.
Torna-se relevante assumir que a forma como a criança vai lidar com a própria doença depende também da forma como os pais transmitem a sua angústia. Daí muitos autores defenderem que o ajustamento da criança à doença pode depender mais do funcionamento familiar do que da doença em si.
Na fase dos tratamentos é habitual verificar-se uma alteração na relação entre a criança e os pais, uma vez que aquela passa a encarar os médicos e restante pessoal de saúde como figuras de dependência, papel que antes estava só atribuído aos progenitores. Mais uma vez, tal pode exaltar a vivência de problemas de cariz narcísico por parte dos pais.
Estudos revelam que, estatisticamente, são as mães que mais frequentemente acompanham a doença da criança, as que sentem mais as exigências da criança doente e as que se sentem menos apoiadas pelos parceiros e também são elas que, de um modo geral, deprimem mais frequentemente. Ainda considerando as estatísticas, no ajustamento psicológico à doença de um filho, os pais envolvem-se menos (por questões ocupacionais ou por estratégia) e têm níveis de ansiedade mais baixos.
Do lado da criança, na fase do tratamento, esta não deixa de passar por situações potencialmente ou efectivamente traumáticas, sendo aconselhável a presença dos familiares junto da criança.
Já na fase de estabilidade ou de restabelecimento, continua a ser importante o estilo securizante por parte dos pais, o que, sabe-se, nem sempre é fácil conseguir-se, pois estes também necessitam de tempo para adaptação à sua criança restabelecida, além de que a preocupação com o fantasma da repetição do quadro de doença possa levar a comportamentos de oposição do lado dos pais. Nesta altura, a aposta deverá ser a merecida retoma da criança à sua vida do mesmo modo que as outras crianças e privilegiando-se a independência.
Alice Patrício, Psicóloga Clínica, para Up to Kids®
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