Todos os dias levo a minha filha à creche a pé. É um percurso de cerca de cinco minutos (que sorte), cinco minutos esses só nossos no meio da azáfama da cidade que acordou e das pessoas que correm para os empregos. Aproveito para lhe cantar ao ouvido, para a fazer rir, para lhe dar conselhos absolutamente dispensáveis (“aproveita para dormir bem nas sestas que hoje à noite acordaste muitas vezes”; “aprende uma música nova, amanhã vai saber-te bem reconhecê-la” ou “não arranques as meias dos pés do Pedro, por mais divertido que possa parecer, ele fica com frio nos amendoins, ok?”). No trajecto que fazemos passamos por dois infantários e duas escolas, tantos pais e tantas mães, muitos meninos e meninas. Tal como quando estamos prestes a ser mães e começamos a reparar que há muitas grávidas à nossa volta, o mesmo parece acontecer com as crianças. Ao fim de dois meses há caras muito conhecidas, pais que me cumprimentam… E duas crianças que marcam os meus dias. O primeiro menino é surdo. Tem os seus dois aninhos e caminha com a mãe, raramente a olhar em frente, porque vai comunicando com ela, tal como eu faço com a Mariana. Não consigo entender o que dizem, que conselhos ou histórias partilham, mas penso que nos seus dois anos de idade o menino não parece sentir os olhares inevitáveis que lhe vão lançando. É provável que já se tenha apercebido de que tem algo que o diferencia dos outros colegas. As crianças são cruéis, mas permito-me pensar: “desde que idade?”. Porque aos dois anos eles veem a diferença, podem verbalizá-la, mas só se incomodam com ela se os factores externos (muitas vezes, demasiadas vezes, os adultos) lhes derem razões para tal. Da minha parte digo à Mariana “agora temos de nos chegar um bocadinho para lá, vem aí o nosso amigo que também gosta das conversas com a mãe”. Porque ele parece gostar. E é diferente, sim, dos outros meninos que vão quase arrastados pelas mãos dos pais, que mal os olham, cheios de pressa para cumprir horários.
A segunda menina é um borbulhar de energia. Como leiga não sei explicar ao certo a sua condição, mas há algo no seu cérebro que a impede de ter memória a longo prazo. Porque todos os dias, sem excepção, quando nos vê diz à mãe: “olha, um bebé tão lindo, posso dizer olá?”. Tem treze anos, sei-o porque se orgulha de o dizer, e anda no terceiro ano. De todas as vezes fica encantada com as bochechas da Mariana, de todas as vezes se espanta por partilharem o mesmo nome. É sempre uma novidade para ela. A mãe pede-me desculpa, todos os dias, e todos os dias peço para não o fazer. Deve estar tão habituada a sentir que tem de pedir desculpa, que isso lhe dá um peso. Quando olho para a filha dela, vejo uma possibilidade infinita de novos começos. E é um bom começo quando diariamente ela se encanta com algo positivo.
Claro que deve ser cansativo, exasperador, mas… acredito muito na máxima que diz que Deus nos dá frio conforme a roupa. E acredito que aquela Mariana também deve ter sido embalada com histórias positivas e ensinada a reparar nas pequeninas coisas.
Ou talvez tenha vindo a ensiná-las à mãe. Dia após dia.
Queixamo-nos. Sentimo-nos cansados e perdidos. E poucas vezes gratos. Tento agradecer por aquilo que tenho, pela filha saudável e feliz que tenho comigo, mas acredito que podíamos ser mais agradecidos.
Levantar os olhos do nosso umbigo e agradecer as coisas boas. Pegar nas coisas más e aprender alguma coisa com elas.
Todos os dias aprendo alguma coisa e estes cinco minutos só nossos têm-me ensinado mais do que poderia prever. E tenho tanto para aprender, para depois lhe poder ensinar. Todos os dias. Até ao fim dos meus dias.
Por Marta Coelho, para Up To Kids®
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Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!
4 comentários
Adorei Marta!!! Sou tua fã e por isso suspeita…mas revejo-me na tua sensibilidade e é quando olhamos para o lado… que devemos agradecer todos os dias aquilo que temos de maravilhoso, que são os nossos filhos saudáveis!! Beijinhos minha querida.
Obrigada, Rui 🙂 ter filhos faz-nos ver as coisas com outros olhos e relativizar o que pouco importa. Mas há quem tenha realidades complicadas e a minha vénia é também para eles. Beijinhos!
Apesar de nunca ter pensado nisso, são palavras que ficam no pensamento de toda a gente, depois de serem lidas!!!E chego a conclusão, que me identifico com tudo….pensado que nunca me lamentei de nada da eva, e dou graças a deus por ter a filha que tenho!!!Beijinhos Martinha***
Coisas aparentemente tão simples na vida, como ter filhos com saúde física e mental, facto que tanta vez negligenciamos….. Nunca é demais haver artigos deste tipo, com chamadas de “atenção” desta natureza porque quem está bem nem dá o grande valor que tem! Abençoados mães e pais que, para além de o serem, têm ainda a enorme preocupação de zelar pelos seus filhos cujos problemas são mais um motivo de grande atenção e preocupação redobrada no seu dia-a-dia. É para eles que vai o meu grande abraço de solidariedade!