Memórias de infância
“É assim que quero que a minha filha veja a sua infância.”
Dizem-nos, ao longo da vida, que para sermos felizes devemos olhar em frente. Projectar no futuro, planear e trabalhar no sentido de alcançar aquilo a que nos propomos. Não tenho nada contra essa máxima, mas tenho uma característica, talvez se possa tratar mesmo de um defeito, de olhar bastante para trás. Ajuda-me a ver de onde parti, o que vivi, o que aprendi e sem essa espreitadela metódica que vou fazendo aqui e ali parece-me difícil programar o que está por vir.
Lembro com muito carinho, e bastante saudade, a minha infância.
Tenho memórias tão boas que gostaria que pudessem ser revividas hoje, sempre que eu quisesse. De certa forma é isso que faço quando as revisito. Lembro-me de estar debaixo dos cobertores, de manhã cedo, antes de ir para a escola e beber o meu biberon com Nestum aquecido ainda de pálpebras pesadas. De dançar com os meus pés pousados nos pés do meu avô e olhá-lo cá de baixo sem perceber como é que alguém podia ser tão alto. De o meu outro avô me torcer a orelha para se meter comigo, sem nunca me magoar, e isso ser a coisa mais divertida de sempre.
Lembro-me de ver o meu pai engraxar os seus sapatos com uma dedicação incrível aos sábados à tarde enquanto dava o hóquei na dois. E de ao domingo almoçarmos bacalhau depois de ver a Fórmula 1. De irmos andar de bicicleta ou de patins a Belém sem pressas.
Lembro-me de esperar que o telefone de casa tocasse a avisar que não havia escola porque estava a nevar – e esse dia nunca chegou.
Dos dias que íamos passar ao escritório dos meus avós, nas férias escolares e dos lanches que nunca me souberam igual: pão-de-leite misto com néctar de pêra. De fingir que estava a dormir quando chegávamos de um jantar fora de casa só para me levarem ao colo. Lembro-me de estar na cozinha enquanto a minha mãe cozinhava e contar-lhe todas as aventuras do dia – e acrescentar ponto atrás de ponto.
De escrever postais nas férias e muitas vezes regressar antes de estes serem entregues nas respectivas moradas. E de esperar ansiosamente pelas sextas-feiras para poder ver mais um episódio dos Ficheiros Secretos. De encher o quarto de posters dos meus ídolos, e gravar cassetes directamente da rádio e ouvi-las até à exaustão.
Lembro-me de me pintar com a minha prima e fazermos espectáculos para a minha avó com as músicas que estavam na berra na altura. De admirar as unhas dos pés da minha outra avó, que estavam sempre impecavelmente pintadas e sonhar com o dia em que poderia fazer o mesmo. E de roer as unhas às escondidas e de as pessoas me dizerem que não se notava nada porque não tinha os dedos cabeçudos.
Lembro-me de perguntar “falta muito?” quando estávamos a caminho de algum lugar muito desejado.
De jogar à bola com o meu irmão no corredor. E andar de skate. Vê-lo a jogar ao guelas. E ouvi-lo reclamar porque eu perdia as vezes todas quando jogava Sega. E porque não sabia cantar em inglês as músicas que passavam no rádio e mesmo assim insistia em cantá-las. De ver as provas de natação do meu irmão e ficar desejosa de partilhar os queques e as pipocas doces que lhe davam no final.
Lembro-me de ler os livros da Sophia e ficar fascinada com aquela dança de palavras, com a melodia das histórias que cresciam dentro de mim. De ir ao circo e maravilhar-me com os trapezistas. E de subir à árvore antes da catequese e conseguir sempre não arranhar os sapatos nem estragar a roupa.
De ir à praia no Baleal e andar de bicicleta sem rodinhas.
Lembro-me destas e de tantas, tantas outras coisas.
Lembro-me também de não ver esforço nos meus pais. Não se esforçavam para termos programas, não se esforçavam para nos fazerem felizes, não se esforçavam para termos o que fazer. Simplesmente as coisas aconteciam naturalmente, sem forçar nada, só porque assim é que deve ser.
É assim que quero que a minha filha veja a sua infância. Como algo bom, positivo, que desperta saudades. Em que nada foi forçado, em que o amor existiu naturalmente.
Sempre.
imagem@weheartit
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!
1 comentário
Então você quer uma filha que vai sentir saudades da infância? E se ela for mais sensível do que você? E se a saudade dela afetá-la de uma maneira negativa? Não estou dizendo que deva ser ruim, apenas acho que as pessoas deveriam ser mais cautelosas ao decidir terem filhos, a maioria não tem noção do que está fazendo.