Não me esqueço do dia em que me mandaram fazer uma biópsia.
Nem da forma como disseram, nem do tom, nem do olhar.
Ou talvez eu tenha viajado de imediato para um diagnóstico de cancro e tenha visto naquele olhar a pena que nunca quis que tivessem de mim.
O percurso foi longo, desde o dia em que prescreveram a biópsia até ao último dia de radioterapia.
Começou naquele 27 de Setembro e dia 2 de Fevereiro terminou, se é que termina…
Exames de rotina.
Primeiro mamografia e depois ecografia. Estou deitada na maca, ansiosa. Há sempre ansiedade nos exames, e a médica diz as palavras que não queremos ouvir: ”Tem aqui uma coisa que tem que ser vista, aconselho uma biópsia…”. Saio do gabinete a conter as lágrimas, não quero fazer figuras. O meu marido espera-me na sala de espera, ao vê-lo as lágrimas caem enquanto lhe conto. “Não te preocupes vais ver que não é nada e se for fazemos o que for preciso para se resolver.” Palavras de apoio tão necessárias. E aos filhos, não quero contar nada, não quero preocupá-los, não contamos nada! Mas eles notam que se passa alguma coisa, veem a nossa expressão preocupada, ouvem conversas em sussurros, mas não dizem nada.
Chega o dia da biópsia. A biópsia, que palavra feia! Biópsia.
E a pessoa vê na cara das enfermeiras um olhar de piedade e bolas que isto custa mesmo. Acho que vou ter mesmo alguma coisa grave ou não me fariam passar por isto! Uma biópsia.
Dizem: “Agora ponha gelo e em 8 dias telefonamos a comunicar o resultado”. E telefonam passados 5. “Fique descansada que não é maligno.”, e o meu marido conta aos nossos filhos que a mãe passou por um exame, uma biópsia, mas já está tudo bem, e eu choro ao telefone com a minha mãe, estamos a chorar de alívio, mas passados minutos telefona a médica e diz que é uma hiperplasia atípica e que tenho que retirar não sei o quê mas eu só fixo o atípico e é só o que decoro e repito a todos. “É atípico tenho que tirar antes que seja mau”. E chega o dia da operação.
O dia da operação
O meu marido só pode ir comigo até à porta do piso, a partir de aí estou sozinha. E dispo-me sozinha e ponho a touca e a bata, depois veem buscar-me com a maca. Deito-me e tapam-me com um lençol branco e frio, e levam-me e vejo as luzes do tecto do hospital e oiço conversas de circunstância.
Estou sozinha. Alguém diz: “Temos que cortar esta pulseira, mas não corto já que pode ser que a médica não se importe”, e não se importou: “O quê? cortar a pulseira tão pequena e ainda por cima com búzios? Nada disso! Pode ficar.”
“Conte em decrescente” e adormeço. E sou operada. E acordo a tremer, tenho tanto frio! Peço a um enfermeiro que passa para me trazer um cobertor mas trazem-me algo ainda melhor. Um aparelho a deitar ar quente para baixo dos lençóis e fico tão confortável que me sinto nas nuvens. Não quero sair mais dali. E fico em paz. Já passou.
Só que o que é retirado do meu corpo vai para biópsia e eu ainda não sei que não está tudo bem. Teria o resultado quando fosse tirar os pontos.
E vou para casa, descanso, recupero e está tudo bem.
O diagnóstico
Quando vou ao hospital para tirar os pontos a médica diz: “Que estranho ainda não estar aqui o resultado mas fique descansada que lhe telefono assim que receber.”
“Mas Sra. Dra. diga lá se for mau é o quê?” Ela explica e eu percebo tudo mas não sei repetir nada de nada, saio do gabinete e digo ao meu marido que pode ainda haver alguma coisa mas não sei dizer o quê. Vamos embora e já que estamos em Lisboa almoçamos fora com a Mãe dele que é raro e aproveitamos. A meio do almoço o telefonema. Aguento para não chorar. Que vergonha chorar agora.
Oiço do outro lado: “Olhe afinal é pior do que se esperava e tem que fazer radioterapia e terapia hormonal. Vamos reunir uma equipa médica e logo lhe dizemos o que ficou definido para si, para já marcamos consulta na próxima segunda”. E eu choro de medo, tenho os meus filhos, o meu marido e não quero que eles sofram, não merecem sofrer. Quero tanto viver!
O dia da consulta
Chega o dia da consulta, dirigimo-nos ao departamento de oncologia, pensei lá eu vir a este piso tão cedo, e cruzo-me com outra paciente que ficou no mesmo quarto que eu. Trocamos olhares cúmplices.
Entrei neste mundo, agora é mesmo real. Já cá estou.
O médico explica tudo e diz mais uma vez que não é grave e que tive sorte. A sorte de ter feito um exame de rotina sem qualquer desconfiança do que se iria passar. E sorte é a palavra que mais usamos quando falamos da situação.
“Mas não mora aqui então quer fazer a radioterapia onde? O mais perto de si é Évora.” E eu digo Évora porque não quero sair de casa, quero estar com a família. Quero ir e vir e dormir em casa com a minha família, os meus cães e os meus gatos. E quero ter a minha lareira, a minha manta e o meu sofá. Quero estar com eles e dizer que está tudo bem. Está tudo bem.
Mas a transferência do processo para Évora demora e a ansiedade aumenta. Quero saber como vai ser, quantos dias, como é, como me vou sentir e ainda tenho o meu trabalho. Que horror tantas faltas já nem sei o que dizer. São dias duros à espera de plano de tratamento.
No fundo a vida fica em standby porque não sabemos o que se seguirá.
E esperamos e mal dormimos e mal comemos. “Tens que comer estás magríssima”, mas eu como! Mas não tenho fome, não tenho sono, não tenho nada. Só quero que me digam o que tenho que fazer e seguir em frente. A espera da definição do que iria ser a minha vida.
Os meus filhos, a minha maior preocupação.
Eles precisam de mim, são 3. Têm 17, 15 e 7 anos. Quero ser mãe deles. Não quero que sofram por mim. Quero que vivam a adolescência e a infância sem preocupações deste tipo. Quero que sejam felizes!
E fomos escondendo, decidimos que seria melhor dizer só o mínimo. Não era necessário. Havia quem dissesse: “Mas eles são crescidos já percebem e podem ficar chateados de não saberem um dia mais tarde”, e quem dissesse “Claro isso não é nada não vale a pena preocupá-los”.
Então dissemos que tinha corrido tudo bem mas que a mãe tinha que fazer uns tratamentos para ter a certeza que tinha retirado tudo. A palavra maligno não podia ser dita eu não queria dizê-la e mesmo à família dizia sempre “chato”, “menos bom” mas nunca abertamente cancro da mama – maligno.
Eu sei que não é grave, dizem os médicos que tive sorte e eu repito a todos que não se preocupem, tive muita sorte resolveu-se a tempo. Mas depois à noite vêm as dúvidas e se, e se, e se?
E finalmente definiu-se o tratamento.
21 sessões de radioterapia e terapia hormonal 5 anos.
Ok vamos lá despachar isto e ter uma nova oportunidade. E agora o que dizer? Eles vão perceber. Até porque Évora não é aqui ao lado e ir todos os dias não passa despercebido. Mas já não são crianças há que contar aos mais velhos, mas o quê!? E será justo? Será melhor? O que fazer?
De repente vem tudo à cabeça, pensamos em toda a vida que eles têm pela frente e queremos estar presentes. Sinto o tempo a fugir. E começo a fazer listas mentais das coisas que quero fiquem para sempre e escrevo-lhes:
- Nunca desistam dos sonhos.
- Não chorem por mim.
- Nunca deixem que ter ficado sem mim vos estrague a vida mas que pelo contrário seja uma força para serem felizes por vocês e por mim, porque eu estarei sempre ao vosso lado e ficarei feliz com cada felicidade vossa.
Mas não lhes mostro. Eu vou cá estar! Eu vou cá estar!
Depois, por mais que não se queira falar à frente dos miúdos há sempre quem pergunte e eles vão ouvindo aqui e ali e vão-se apercebendo. Até que um deles pergunta e temos que contar. Mas dizemos que está tudo bem que é só prevenção embora cá dentro no íntimo os medos sejam imensos. E se volta a aparecer? E se tenho noutro lado?
Assim chega o dia da radioterapia.
“Tem ali a bata com o seu número e uns chinelos, vão ser seus até ao fim do tratamento”. Ao contrário do trato impessoal habitual dos serviços públicos aqui na radioterapia há uma simpatia acima do normal, todos os funcionários são tão gentis que dá vontade de agradecer mil vezes a amabilidade. “Entre ali e espere ser chamada”.
E caminho em direção à sala da radioterapia, com expectativa, aqui estou, está mesmo a acontecer, como um corredor da morte só que aqui é vida pois é graças a tratamentos destes que podemos continuar a viver.
Então penso que realmente tive sorte.
Que descobri ou descobriram a tempo, que fui operada rapidamente, mas e quem não faz exames de rotina? E quem não faz prevenção? Não é culpa nossa é culpa de um sistema que manda fazer exames depois dos 50.
Agora segue-se outra etapa, a do medo que reapareça ou que surja noutro lado. Que da próxima não tenha tanta sorte como tanto ouvi, e percebo, claramente, que devo a vida à primeira médica que me fez chorar.
Por Mariana Castro, a História de um diagnóstico para Uptokids