O João foi diagnosticado com PHDA. Esta carta é para o João.

O João foi diagnosticado com PHDA. Esta carta é para o João.

Quase nunca me sinto cansado.

O mundo é um sítio enorme, cheio de coisas para descobrir, mas… tenho de ir para o colégio. Lá, tenho de fazer coisas que, às vezes, não me apetece nada.

Prefiro mil vezes brincar no recreio.

Eu sei que custa a acreditar, mas eu bem que quero e tento passar a matéria do quadro, só que é sempre nessa altura que tudo acontece. O meu colega do lado começa a conversar comigo, lá fora um carro apitou, ouço o Manel a falar baixinho lá atrás, um lápis caiu no chão, eu distraio-me e… Pronto! Quando volto a olhar para o quadro, já não sei onde é que eu ia. Fico baralhado e demoro a achar em que parte fiquei. Entretanto, já todos acabaram de passar a matéria, menos eu. Fico chateado…

A professora costuma dizer: – João, já acabaste de passar a matéria? Preciso de apagar o quadro!

Custa-me prestar atenção à aula e ao que a professora diz.

Ela pede-me para eu ser mais organizado com o material, mais atento à explicação da matéria, mas… Uma coisa é certa: concordo que me mexo muito, levanto-me da cadeira várias vezes, faço barulho com o lápis, falo muito e atrapalho a aula.

Acontecem-me quase sempre duas coisas: ou faço as coisas mal feitas porque quero fazê-las o mais depressa possível para ser o primeiro a acabar, ou então até quero fazer tudo bem feitinho e até ao fim, mas… não consigo! Começam os comentários: “preguiçoso”, “não te esforças”… Às vezes parece que ninguém me entende.

Por mais que eu tente, não consigo prestar atenção e terminar as tarefas tão bem como os outros. Como eu gostaria… A sério!

Quando estou com os meus amigos e vem à baila a matéria da aula, começam a rir. Às vezes até me chamam “totó”. Todos acham imensa graça… menos eu!

Quando estou na sala, sentado sozinho na mesa, sem perceber nada do que a professora está a dizer, começo a roer o lápis, a desmontar as canetas, a fazer desenhinhos no livro, a dobrar as pontas das folhas do caderno e a mexer com os pés sem parar.

Acho que preciso de estar em movimento para me sentir melhor.

A professora até diz que parece que tenho um tal de “bicho carpinteiro” no corpo. Às vezes também pergunta se a cadeira tem formigas porque não paro sossegado. Já reparei que quando a professora me faz uma pergunta eu respondo imediatamente. Na verdade, às vezes até respondo antes de ouvir a pergunta até ao fim. E só quando estou a responder é que reparo que não era nada daquilo…

E quando é para escrever? É complicado… Eu bem que gostaria de não ter de escrever aquilo tudo. Custa tanto!

Vou confessar um segredo: acho muito mais interessante ver o que se está a passar fora da sala de aula. Pela janela, vejo as folhas das árvores a balançarem, as nuvens a andar e o passarinho a voar. Pela porta, vejo quem está a passar no corredor.

Fico triste, irritado e confuso porque sei que as pessoas às vezes ficam cansadas de mim.

A minha professora já escreveu vários recados na agenda para a minha mãe: “ O João não fez os trabalhos de casa!”, “O João não trouxe o material”, “O João…”. Diz que sou distraído, que quando vou no corredor não olho por onde ando, que deixo cair as coisas das mãos, que vivo “no mundo da lua”. Fico triste. Às vezes tento disfarçar, finjo que não ligo… mas não é verdade!

Um dia, gostaria que todos dissessem: “- Olha, o João foi top! “ – Ah, como eu gostaria de ser top a fazer uma tarefa da escola. Lá em casa não é muito diferente da escola. Quando alguém faz alguma coisa de errado… “Foi o João!” E na verdade fui mesmo. Sei que não sou tão cuidadoso como deveria ser. Quando dou por mim… já fiz! E quando chega a hora de fazer os trabalhos de casa? É mau. A minha mãe começa a dizer para eu ir fazer os trabalhos de casa, eu enrolo, digo que vou já fazer, enrolo mais um bocadinho, digo que vou agora, ainda consigo arranjar mais uma desculpa, até ao ponto de ela ficar irritada e perder a paciência. Uma vez até fez o trabalho por mim… mas a professora percebeu logo!

Chegou um dia que a professora chamou os meus pais à escola e aconselhou-os a levar-me a um psicólogo porque ele poderia ajudar-me. Claro que disse logo que não. Fiquei com medo que os meus colegas inventassem mais um apelido. Mas… não tive saída. Lá fui, e até gostei, senti-me mais tranquilo! Conversou comigo e pediu-me para fazer umas coisas.

Então, num outro dia, o psicólogo chamou os meus pais e recomendou que eu fosse a um médico.

Pensei: “Será que estou doente?”. Quando cheguei lá, o médico falou comigo, fez-me muitas perguntas e até me pediu para fazer umas coisas também. Bem simpático! Ele disse que eu tinha dificuldade em prestar atenção e em ficar quieto e até disse como é que isso se chamava, mas é um nome tão comprido que eu não me lembro agora. Aliás, o psicólogo e o médico disseram que eu sou um miúdo inteligente. Como eu gostaria que os meus amigos tivessem ouvido!

Às vezes fico a pensar: Mas porque é que eu não consigo prestar atenção e fazer as tarefas se sou inteligente? Porque é que eu consigo passar horas infinitas em frente à televisão? Porque é que eu consigo jogar tão bem no computador e até ganhar ao Duarte?

A verdade é que me sinto melhor desde que todos me estão a ajudar: a minha família, a minha professora, o psicólogo e o médico. E eu estou a fazer o melhor que posso: a minha letra melhorou, já consigo prestar mais atenção, agora penso mais antes de fazer alguma coisa. Às vezes relaxo um bocadinho, mas depois esforço-me e continuo. Um dia, já nem sequer irei lembrar-me da frase: “- João, já acabaste de passar a matéria? Preciso de apagar o quadro!”.

Esta história é para ti

A ti: A história do João foi escrita para ti. O João conta coisas que sabes melhor do que ninguém. Por exemplo, como é ter aquilo que tem um nome mais difícil e comprido que “otorrinolaringologista”, a “perturbaçãodehiperatividadecomdéficedeatenção”.

De certeza que já te passou pela cabeça conversar com os teus pais, com a tua professora, ou com um profissional sobre como é difícil prestar atenção ou permanecer quieto. Poderás ler a história com eles, contar-lhes no que te pareces com o João e no que és diferente dele, e fazer-lhes todas as perguntas sobre as tuas dúvidas.

A história do João poderá ajudar-te a ter essa conversa!

Photo by Eddie Kopp on Unsplash

15 thoughts on “O João foi diagnosticado com PHDA. Esta carta é para o João.
  1. Percebo muito bem como é viver com PHDA, o meu filho também têm, foi muito difícil para mim ter de lidar com todas estas situações aqui mencionadas tanto no artigo como nos comentários.
    Mesmo com 20 anos ainda tenho preocupações… acho que eles continuam a sofrer… e existe falta de informações para estes “miúdos” atualmente graúdos.
    Saem das consultas de desenvolvimento e ficam entregues a eles próprios…
    Muitas vezes não sei como o ajudar.

  2. Vivemos isto todos os dias, tenho num filho com défice de atenção e consigo visualizar em casa palavra o seu dia a dia. Infelizmente nem todos os que nos rodeiam compreendem 😔
    Obrigada por nós ajudar a saber que não estamos sozinhos 🙏

  3. As escolas não estão de todo preparadas para receber essas crianças tenho um filho com paralisia cerebral graças a Deus consegue andar e fazer algumas coisas sozinho mas a parte neurológica e o que não funciona e é muito difícil perceber que os professores não tem paciência para ele e muitas vezes perde o controle pq o irritam de tal maneira só Deus sabe
    Lutarei todos os dias pelo direito dele de inclusão
    Obrigada sei que o texto não falava disso mas senti dentro do texto

  4. Eu também sei o que é isso tenho dois filhos hiperativos um com dislexia e o outro com perturbação de oposição. E é tudo tão verdade e nós pais sem apoios para conseguirmos dar qualidade aos nossos filhos. A escola nada faz andamos a cerca de um ano com o mais novo a pedir ajuda no processo de inclusão e nada. Andamos em médicos (neuropediatras) particulares que gostam de experimentar É que nos acusam de falta de regras em casa. Enfim uma batalha dura para nós e para eles.

  5. Obrigada.
    Sei o que isso por duas razões, por mim (também tenho) e pela minha filha mais nova.
    É tão difícil expressar o que sentimos, porque à partida já nos sentimos incompreendidas.
    O que escreveu é um pouco a nossa realidade.
    É difícil na nossa sociedade, sobreviver e trabalhar com este diagnóstico, ainda não somos bem aceites.
    Mais uma vez obrigada.
    Bjinhos

  6. Obrigada por explicar tão bem o que os nossos meninos sofrem por não serem compreendidos. Já senti na pele este sofrimento e este estigma que colocam sobre estes meninos(as). Tenho uma filha com dislexia e défice de atenção que muitas vezes passou por mal educada por interromper conversas porque se não falasse se esquecia da ideia. Por isso digo, muito obrigada por divulgar… Grande beijinho

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