
O meu nome é Uva Passa, sou mãe, e sou Dependente.
Apesar de me sobrar pouco tempo para me dedicar a uma boa conversa com amigos, dessas sem horários e sem pressas, ainda que seja ao telefone, arrisquei a meia hora que me sobrou do almoço, subtraindo o tempo que dedico com grande prazer ao meu diário e viciante périplo pela internet.
Agarrei no meu apêndice electrónico, um smartphone de última geração ligado pela veia safena ao meu escritório, limpei-o cuidadosamente à camisola, e cliquei na tecla de marcação rápida: amiga de infância.
A chamada arriscada é uma de entre as mil que faço diariamente por motivos profissionais, e é bem capaz de ser interrompida, mas cuido que a amiga de infância compreenda os motivos (todos de força muito maior, claro) e se a conversa ficar a meio, conto resolver a coisa de forma natural com um ‘mando-te uma mensagem pelo facebook e combinamos um café’.
– Então miúda, estás boazinha?
– Não te sei dizer, mas qualquer dia levanto-me da secretária onde tenho o computador, e trago a cadeira agarrada ao rabo!
– LOL!
Este LOL não foi escrito em parte alguma, pois que falávamos ao telefone, este LOL dito pela minha amiga como se fosse a coisa mais natural desta vida, é a prova, se é que alguém precisa de provas, de que a dependência crescente e alarmante que todos temos das novas tecnologias, contaminou definitiva e irremediavelmente a forma como nos relacionamos.
A minha amiga de infância sonegou à sua personalidade a sonora e agradável gargalhada, imagem de marca desde que nos conhecemos há mais de 20 anos, para a substituir por um termo informático grosseiro.
Sem a risota do costume, a conversa tornou-se rapidamente monocórdica e sem interesse.
Ela já sabia da nossa viagem ao Porto, viu ‘as fotografias no Facebook, e a miúda está enorme!’, já sabia a minha opinião sobre os acontecimentos de Paris, o que penso sobre a mortandade dos rinocerontes em África, tudo por um punhado de queratina que vale 75 mil euros o quilo, e até sabia que na terça-feira não me senti muito bem por razões de um desarranjo intestinal qualquer, desses que nos trazem uns vírus aborrecidos, mas menos perigosos que os informáticos.
Hoje em dia dar uma novidade a alguém é uma verdadeira aventura, senão uma impossibilidade.
Com cada vez mais gente ligada mais tempo, com acesso a tudo o que é notícias, novidades, acontecimentos e descobertas, o mundo tornou-se num ovo e as boas-novas dão-se no mural, no post de segunda-feira, e até o parto do primogénito, coisa intima e de recato, é escarrapachado num vídeo onde os amigos e conhecidos se deleitam com gostos virtuais e comentários de grande profundidade, tais como: ‘credo, isso ficou feio’ ou ‘a minha costura foi mais atrás, mas agora quase não se nota’.
A dependência da Internet é generalizada e as camadas mais jovens são as que estão mais expostas ao problema.
Falamos informaticamente todos os dias, ou pelo menos vamos sabendo uns dos outros pelas redes sociais, e isso parece bastar-nos para preencher a lacuna social sonegada pela falta de tempo e pela primazia da vida profissional sobre a vida pessoal, ou antes, serve-nos para apagar uma certa culpa que é nossa, de paulatinamente preferirmos estar em casa, agarrados ao computador, em vez de sair para encontrar as pessoas que outrora fizeram parte da nossa vida real.
Enquanto eu, menina e miúda, corria para a rua, para a discoteca ou para o café, os nossos filhos correm para casa, para os seus quartos, para se ligarem ao skype, e lá permanecem horas e horas, muitas vezes madrugadas adentro.
Muitos deles baseiam a relação com os colegas e com os amigos apenas na condição virtual que conseguem desenvolver em casa, muito por culpa (não se sabe bem de quem), de que os meninos na rua, correm um grave perigo de vida.
´Putos que crescem sem se ver, basta pô-los em frente à televisão’… é assim, agora mais do que nunca.
Quantos casos de adolescentes conhecemos que deixaram para trás um percurso académico de bom nível para se fecharem no quarto a jogar computador dia e noite?
Vários estudos elaborados por terras lusas dão conta da existência de quase três quartos (73,3%) de jovens viciados na Internet, sendo que destes, há 13% que exibem níveis severos de dependência. Níveis severos de dependência, miúdos de 13 anos internados em clínicas de recuperação, com depressões profundas provocadas pela abstinência. E aumenta a cada dia…
É um número assustador se pensarmos que todos estes miúdos vão ter um grau absolutamente pavoroso de inadaptação ao meio profissional onde se trabalhe por exemplo em equipa, ou sem recurso a novas tecnologias (trabalhos indiferenciados) e onde vão sofrer na pele a total inadequação ao meio social, que não adquiriram por força do isolamento.
Na fase das entrevistas de emprego o desastre é total. A perda de lugares profissionais [emprego jovem] é também um sinal de que muitos jovens são totalmente inaptos para transmitir ao seu empregador/entrevistador as suas capacidades (muitas das vezes sublimes), gorando muito por culpa do acanhamento e do parco vocabulário verbal, as expectativas de uma vida.
E já nem falo dos problemas que isso traz a todos nós enquanto sociedade.
O meu exemplo é flagrante. Sou cada vez mais dependente, muito embora consiga escamotear a dependência porque sou um adulto consciente, e do passado trago ainda as melhores recordações da minha vida com os outros, que perpétuo o mais que posso e sempre que posso, tendo ainda enraizada uma infância e juventude muito longa, sem internet e sem prisões domiciliárias, onde adquiri as ferramentas que hoje me ajudam na relação com os outros-de-carne-e-osso.
Não direi pois, que me encontre já catatónica, em estado avançado de demência tecnológica, mas a verdade é que não consigo distanciar-me muito da internet e das minhas redes sociais, e do telemóvel nunca me separo.
Exacerba esta dependência o meu trabalho (8 a 12 horas diárias), todo ele feito com apoio tecnológico, e até a minha escrita, aquela que passa na frente dos olhos de tanta gente, toda ela baseada em pesquisas e leituras que faço na internet e que partilho na internet.
Não tenho forma de me afastar do vício.
Sou dependente, mas tenho consciência de como aqui cheguei.
Tenho um computador desde os 15 anos. Telemóvel desde os 19.
Se o meu caso é grave, imagino os que começam na 1ª infância a ter contacto com as novas tecnologias numa base diária e sem restrições.
A minha filha usa a tecnologia, muito por minha culpa, desde os 5/6 anos (e a luta foi renhida), altura em que começou a perceber que a interação que obtinha com o computador da mãe era muito mais interessante do que a televisão ou do que os brinquedos cor-de-rosa que abundam no quartinho.
Entornámos o caldo demasiado cedo.
A minha luta é tentar ao máximo que a minha filha de 8 anos não se isole ou não crie comportamentos antissociais que lhe vão ser imensamente prejudiciais na vida adulta, mas a verdade é que eu estou aqui a escrever isto, é domingo, e ela está agarrada ao tablet (que eu comprei) interessadíssima num boneco [Pou] que faz cocós roxos, e às vezes verdes.
Eu, enquanto escrevo este texto, medito sobre o que vou lendo sobre o tema: ‘noutros países, estão a ser dados passos na farmacologia, no sentido de desenvolver novas drogas que atuem sobre estes casos específicos’, ‘em Portugal, o Plano Nacional dos Comportamentos Aditivos e das Dependências 2013-2020, aprovado na semana passada pelo Conselho de Ministros, prevê o alargamento da área de intervenção do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) às dependências sem substância como a Internet’, ‘por cá ainda não há nenhuma iniciativa do género, para a prevenção dos comportamentos aditivos relacionados com a internet’.
Resulta-me claro que a única forma de evitar a dependência não é retirando radicalmente a internet aos miúdos, isso seria privá-los de uma evolução que está aí e da qual (já) não podemos prescindir, mas antes atrasar ao máximo a entrada das novas tecnologias em casa, de forma sistemática.
Uma criança de 3,4, 5 anos, não precisa de um telemóvel ou de um tablet para brincar.
Uma criança de 3,4, 5 anos não precisa de um quarto cheio de brinquedos electrónicos que brincam sozinhos e que não preenchem a sua natureza primordial que é a de desenvolver a imaginação.
Os livros, muitos livros, as histórias no fim do dia, jogos simples, objetos simples, a música, as pinturas, a plasticina, tudo isto dá alegria e profundidade mental às crianças.
A iniciação mais tardia de uma criança na lides da internet não vai fazer com que ela perca o comboio da tecnologia ou que seja menos feliz (e mais inadaptada) na sua idade adulta.
O cérebro de uma criança é uma esponja voraz. Não tem qualquer necessidade de ser programador informático aos 14 anos e nem de ser o feliz vencedor dos 234 jogos que joga on-line com amigos virtuais.
Em suma, e como tudo na vida, a regra é moderar a utilização da tecnologia nos mais velhos, e atrasar o mais possível a utilização sistemática da internet aos mais novos.
Isto só é possível através de atividades atrativas, se possível em grupo.
Podem não acreditar, mas aqueles pais que exibem orgulhosos os filhos de 2 anos a tactear um ecrã com mais destreza que um adulto, é um sinal não de inteligência da criança (isso mede-se sobretudo pela sua capacidade de interagir com os outros) mas um sinal bastante claro de que o caldo já começa a entornar-se, e que muito possivelmente haverá uma tendência natural dessa criança em dar primazia a um mundo virtual, que é absolutamente apaixonante, deixando para trás a enorme alegria que é participar na diversidade da vida e da natureza e no prazer que é o convívio com os outros, presencialmente.
Por Uva Passa, Blog Uva Passa
para Up To Lisbon Kids®
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Dedica grande parte do seu tempo livre à escrita, à leitura e à arte. É casada e mãe de uma menina de oito anos, a frequentar a escola pública.
Um dia vai ser escritora, mas por enquanto continua a trabalhar.
Concordo plenamente, em número, género e grau com a opinião da autora. Já o escritor Erich Maria Remarck lançou, há mais de 70 anos, o livro “Tempo para amar, tempo para morrer”. Eu acho que devemos sempre tentar acompanhar a evolução a todos os níveis mas cada coisa a seu tempo – principalmente quando de crianças se tratam. Quando começamos a subir uma escada não estamos logo no topo! Verdade? Acho que este artigo é uma enorme mais valia para os pais e educadores mas também para os próprios adultos que acabam por nem saber dialogar nem interagir a nível familiar ou social. Parabéns
O problemas não está claramente nas novas tecnologias. A grande questão é o uso que delas se faz, sem que haja um “botão” interno que impeça o resvalar para o exagero e falta de bom senso! Estamos perante uma sociedade obcecada com o mundo virtual; “realidade” que muito prezam. Ademais, hoje, vive-se com o terror de eventualmente poder ser considerado um infoexcluído. E todos sabemos os efeitos perniciosos causados pelo estigma da marginalização.
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