Minha doce Mariana,
Como já percebes tão bem, tens a sorte de ter sete avós. Pois é, eu sei, parece um número pouco redondo e talvez exagerado para a importância desse parentesco mas foi uma das bênçãos com que nasceste. Cedo te aperceberás que nem toda a gente tem tantos avós assim e farei o meu melhor para te explicar o conceito de família moderna em que a nossa se insere e para que seja o menos complicado possível para ti. Porque o amor, este amor de que te falo é dos mais simples que existe. Ainda antes de nasceres já ele crescia de uma forma um pouco incompreensível nos teus avós, testemunhas de uma barriga que demorou um pouco a crescer e com a qual tinham alguma dificuldade em conversar. Mas o amor, esse, brotou no momento em que cada um dos teus avós soube que deixaria de ser apenas pai ou mãe de alguém para passar a ter mais essa responsabilidade neste seu caminho. Incrível o milagre de sentimentos que um ser que mal tem forma provoca em alguém, não é? Todos fomos esse milagre um dia, minha querida, e um dia poderás experenciar por ti própria este amor.
Tive o privilégio de ter os meus quatro avós perto de mim até bastante tarde. Mas em apenas três anos vi dois deles partirem e deixarem a minha vida mais incompleta. Parte-me o coração saber que a avó J. e o avô S. nunca te pegarão ao colo, como fizeram comigo tantas vezes. Como não terás a oportunidade de os conheceres, deixa-me falar-te um pouco deles.
O bisavô S. tinha o dom da palavra, muito por causa da sua profissão (vocação) e um coração de criança que nunca cresceu. Era ele quem nos torcia as orelhas com um sorriso maroto nos lábios, nos fazia rasteiras, foi ele que nos fez provar a todos – a mim, ao tio e aos primos – vinho tinto muito antes de ser altura para isso. Digamos que 15 anos antes, para teres a noção do brincalhão que ele era. Era também o homem mais vaidoso que alguma vez conheci – e bonito também. Se fechar os olhos consigo vê-lo entrar em casa à hora de almoço e sentir o cheiro de Old Spice que anunciava a sua chegada. Não imaginas as saudades que sinto dele. Conduzia terrivelmente e metia um medo horrível à bisavó, que lhe gritava para travar a dez metros do carro da frente. E ele obedecia. Não sabia viver sem ela. Era ela que lhe preparava tudo, desde a agenda que usava no dia-a-dia, ao prato de sopa que só tinha de aquecer no microondas se chegava mais tarde. Ele era tão desajeitado com as tecnologias que a bisavó lhe colou um post-it na parte de trás do telemóvel com o pin, o puk, a referência multibanco e o próprio número de telemóvel. Consegues imaginar o absurdo? Adorava praia e passámos muitos Verões na casa que ele e a bisavó têm no Baleal. Com ele rezava-se sempre antes da refeição e se estivéssemos num restaurante rezar poderia perecer um incómodo e por isso ele preferia que… cantássemos! Não existia! E nós, miúdos de 15 anos, passávamos a que pensávamos ser a maior vergonha da nossa vida e hoje quando nos juntamos gostamos de cantar essa mesma música e a vergonha não está lá. Só o amor da recordação. E as saudades. O bisavô S. ficou doente depois de se reformar, ou melhor, o facto de ter deixado de trabalhar deixou-o doente e isso deu-nos a oportunidade de nos irmos despedindo dele. Como se isso fosse possível…
A bisavó J. apesar do seu metro e sessenta, tinha um coração do tamanho do mundo. O pouco que tinha era para os outros e fazia questão de dar pequeninas lembranças aqui e ali, com tanto cuidado e dedicação que era incrível. Chegava a fazer marcadores de lugares para colocar na mesa dos restaurantes quando o bisavô fazia anos e jantávamos fora. Se, já em adulta, ia almoçar com ela e o bisavô, fazia um banquete com entrada, marisco, prato principal e sobremesa, só com os meus pratos preferidos. Gosto de acreditar que herdei dela esse gosto de fazer algo pelos outros mas estou a anos-luz de ser tão atenciosa como ela. Orgulhava-se dos nossos bons modos. Enchia o peito quando, em miúdos, estávamos com alguma das suas amigas e dizíamos “não tem de quê”. Foi ela que me ensinou a rezar antes de dormir, coisa que nunca mais deixei de fazer. Era na casa dela que havia o pote dos rebuçados a que eu e o tio corríamos assim que lá chegávamos. Era ela que fazia os melhores caracóis do mundo. Era ela que nos preparava pão-de-leite com fiambre e néctar de pêssego para o lanche quando o tio e eu íamos passar uns dias de férias com ela e o bisavô ao escritório. Nunca gostou de praia, mas enquanto os filhos foram crianças não falhou um Verão. Por eles. Nem quando adoeceu e ficou no hospital deixou de se preocupar com os outros. Se lhe ligava a avisar que ia passar por lá para lhe dar um beijinho, pedia para passar na pastelaria e comprar uma sandes e um sumo para o bisavô. Porque se fosse ela a dizer para ele comer, ele dizia sempre que não tinha fome. E estava certa. Eu chegava com o lanche, o bisavô aceitava e comia e bisavó piscava-me o olho, agradecida. Não cheguei a despedir-me dela porque acreditava piamente que ia ficar boa, mas na última vez em que nos vimos abracei-a com força. Já tinha aprendido com o bisavô S. que não podemos deixar para depois.
Os bisavós que ficaram e que tiveram a sorte de te conhecer não têm as caras metades com eles. Vejo a felicidade que sentem quando percebem que já sabes dar beijinhos e lhos dás a eles e o jeito com que dizes “bú” para chamar a bisavó se ela por acaso está a olhar para a televisão em vez de te ver dançar. Espero que possas conhecê-los, que estejam cá muitos anos para te ver crescer mas deixa-me contar-te também dois segredos sobre eles: a bisavó F., independente e muito à frente para o seu tempo, aprendeu a conduzir sozinha e durante 13 anos conduziu sem carta de condução! O bisavô A. quando namorava com a bisavó J. tinha de escolher entre ir ao cinema ou levá-la a lanchar porque o dinheiro não dava para as duas coisas. Pediu ao chefe para lhe dar dois dias de folga quando se casou, ele prometeu que falariam em breve e… até hoje nunca os gozou.
Desculpa se te macei com tanta informação, mas não posso deixar de te dizer de onde vens. É esta a tua herança… Pede ao pai que te conte sobre os avós dele, também tem histórias bonitas para partilhar contigo.
Cresci com os meus avós por perto e isso moldou a minha forma de ser. E é por isso que o pai e eu fazemos tanta ginástica para estares com os teus.
Porque com eles por perto serás uma pessoa melhor, mais rica.
Daqui a uns anos serás tu própria a dizer-me se tenho ou não razão…
Ah, e filha? Aproveita-os bem, abraça-os tantas vezes quanto puderes, liga-lhes para saber deles, deixa-os saberem de ti.
Confia na mãe, vai valer a pena.
imagem@akkarbakkar
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!