Criar crianças feministas
Acredito que serão precisos muitos anos até o machismo que corre nas coisas mais corriqueiras do nosso dia a dia ser erradicado. Se é que alguma vez será.
Falámos já muitas vezes na importância que a educação tem e no papel que os pais (ambos!) têm ou devem ter para que as nossas crianças sejam efectivamente a mudança.
A minha cunhada ofereceu-me no Natal um livro da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, que em português tem o título “Querida Ijeawele: Como Educar Para o Feminismo”. Recomendo a todas as pessoas que têm filhos (independentemente do género) e para aqueles que com elas lidam diariamente.
É um livro curto e que tem como contexto a Nigéria e a forma misógina como as crianças são educadas. Mas muitos dos ensinamentos e reflexões podem ser adaptados para o nosso caso.
Lembro-me de ter crescido a ouvir expressões tão simples e aparentemente inocentes como “sim senhora, cozinhaste X, já podes casar”. Isto é de um machismo intrínseco que nos passa muitas vezes ao lado. Estamos habituadas a ele, não lhe prestamos atenção e é assim que ele vai sendo perpetuado.
E porquê? Porque nunca tal comentário foi dirigido a um rapaz, como se:
1ª – A função de cozinhar fosse exclusiva das raparigas
2ª – A possibilidade de arranjar um marido estivesse directamente dependente das capacidades da dita rapariga na cozinha
3ª – Esse casamento fosse o objectivo importante da vida de uma rapariga.
Falo deste caso como exemplo, haveria muitos outros.
Mas a verdade é que ainda hoje olho à minha volta e vejo que são as mães (perdoem-me as mães de rapazes/homens, mas vão ter de concordar que é verdade) que tratam os filhos como se eles fossem diferentes das filhas. Como se não fossem capazes de tratar da própria roupa, da limpeza da casa, da comida. Quantos rapazes solteiros que vivem sozinhos conhecem que tratam destas tarefas por si? Sem empregadas? Sem as mães a lavarem, secarem e passarem a roupa (elas mesmas ou as suas empregadas)? Sem lhes fazerem comida que dura para a semana? Há, mas são a minoria.
E se olharmos em volta também podemos concluir que muitas raparigas se estão absolutamente nas tintas para as tarefas domésticas e não querem para si esta responsabilidade.
Acho que devemos ensinar aos nossos filhos, independentemente do género, as coisas básicas para que saibam cuidar de si de forma independente.
Mesmo que cresçam para ser adultos que não querem executar as tarefas. Ênfase aqui para o não querem e podem não o fazer porque podem pagar a quem o faça. Queremos mesmo que os nossos filhos, já adultos, tenham uma relação umbilical connosco que se baseia na necessidade de lhes facilitarmos a vida como se continuassem a ser crianças?
Ao escrever esta linha lembrei-me do namorado de uma colega minha, que com 38 anos, quando almoçava em casa da mãe recebia o prato de peixe arranjado por ela. Sem espinhas. Pronto a comer. 38 anos. Não é exagero. Não é anedota. É um facto. E a culpa aqui tanto é da mãe como do filho. É absurdo.
Como mãe e pais queremos estar lá para os nossos filhos. Seremos sempre que nos for possível, os primeiros a estender a mão como os nossos pais fizeram connosco. Mas ajudar não significa fazer. Se ensinamos os nossos filhos a vestirem-se sozinhos, por que motivo permitimos que essa autonomia não seja espelhada nas restantes vertentes da sua vida?
Haveria muito para dizer sobre este tema, mas acho importante reflectir. Sei que muitos dos que estão a ler pensam que no seu caso não é assim. Até pode ser, mas os vossos filhos vão conviver com todo o tipo de pessoas, relacionar-se com elas.
Muito do machismo que tenho visto ultimamente tem origem em mulheres. Seja relativamente a acontecimentos públicos graves como violações, seja nas coisas mais básicas do dia a dia.
Como educadores temos um papel determinante na forma como os futuros líderes do mundo crescem e apreendem a realidade. Se essa realidade for distorcida pelas convenções sociais (e será sempre, não vale a pena termos ilusões, somos todos condicionados por elas) temos então a importante missão de passar valores de igualmente, mérito, a dádiva de amor altruísta, solidariedade, empatia, valorização da paz…
Muitas vezes neste complexo trabalho de criar seres humanos cometemos erros. Fazemos coisas por amor que talvez não sejam as melhores para eles, para nós.
Não é fácil e sou a primeira a dizê-lo.
Estamos aqui para fazermos o melhor que conseguimos.
Mas temos de ir parando no caminho para respirar. E olhar para trás e perceber onde podemos ir melhorando.
Ajudando-nos mutuamente sem nos anularmos.
Com amor tudo se faz, mas o amor não justifica tudo.
Vamos pensar nisto?
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!