O Roberto tem cerca de dezassete anos e joga futebol.
O seu pai, como tantos outros, está presente nos jogos e acredito que em todos os treinos também. Como tantos outros pais quer que o Roberto singre, que dê mais, que mostre o que vale. Acredito que ame o Roberto, que veja nele impossibilidades infinitas e sinta que está a incentivá-lo a chegar mais longe.
Mas, de fora, o que vejo é um pai que se posicionou junto à linha lateral e dali não sai. Grita a plenos pulmões a cada jogada. Insulta o árbitro, insulta os jogadores que fazem falta sobre o filho, insulta os jogadores que não passam a bola ao filho, insulta o Roberto, dirige-lhe palavras que acredita serem de incentivo (ainda que a maior parte delas lhe aponte os erros que está a cometer). Quando um outro jogador falha um golo certo, solta um palavrão mas apressa-se a dizer em voz alta “força, Miguel, para a próxima marcas”.
O Roberto não tem a sorte de ouvir esse tipo de palavras. Acredito que o pai do Roberto tenha querido jogar à bola quando era miúdo. Pode ter inclusivamente jogado, chegado aos escalões principais, sonhado chegar mais longe. Mas não chegou, porque não o reconheço como sendo um jogador de antigamente.
O Roberto, provavelmente ainda a aprender a andar, apaixonou-se por uma bola de futebol, como tantos outros miúdos. O pai nunca mais o deixou deixar de gostar da bola. Isto digo eu, que não estava lá para ver, mas posso imaginar. Ou pode ter sido o Roberto que sempre gostou de jogar e pediu ao pai para jogar futebol a sério. Seja qual for o cenário, o pai está ao lado dele.
Imagino também o Roberto nos intervalos das aulas a chutar à baliza e o pai chatear-se com ele por se poder magoar a sério a jogar à bola com uma cambada de amadores. Ou se prefere passar os intervalos a ouvir música com os amigos e a falar de miúdas, imagino o pai a dar-lhe na cabeça porque tem de se concentrar, de se focar. O pai do Roberto quer que ele seja o próximo Cristiano Ronaldo. Mas a Dolores não passou todo o seu tempo livre a gritar aos ouvidos do petiz que ele era uma nódoa, que tinha de correr mais, que não se estava a esforçar o suficiente – principalmente porque o Ronaldo não fazia nenhuma destas coisas.
Provavelmente o Roberto nem gosta de jogar à bola. E se gosta, a pressão que sente deve começar a tirar-lhe o prazer de estar dentro de campo. Há miúdos que funcionam bem com pressão, mas deste tipo parece-me contraproducente. Durante muitos anos acompanhei amigos que jogavam em clubes de hóquei em patins, campeonatos de natação, mais tarde futsal com o namorado e estes pais existem aos magotes. Ameaçam o árbitro porque deixou escapar uma falta sobre o seu filho, instigam os treinadores a tirar os seus filhos do banco, durante os jogos gritam e pressionam.
Claro que também há os outros pais, que no jogo do Roberto iam tentando acalmar o pai dele dizendo “deixem os miúdos trocar a bola sem estarem sempre a gritar para marcarem golo” ou “é só um jogo de miúdos, vamos ter calma”. Mas a verdade é que fico sempre a pensar que tipo de adultos serão estes miúdos. Se, face a contrariedades, gritam com os colegas, espelhando a sua frustração nos outros. Se, incapazes de chegar mais longe, apontam o dedo aos que estão à sua volta. E, se sim, se isso não é culpa dos pais.
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Como pais queremos o melhor para os nossos filhos. O que é o melhor será sempre relativo. Acreditamos neles, achamos que são capazes de tudo. Mas não são. Serão raros os casos de crianças capazes de tocar piano, falar mandarim, serem detentores do record olímpico no salto em altura, serem campeões nas olimpíadas de matemática – tudo ao mesmo tempo.
Quando lhes dizemos que podem ser o que quiserem, que basta tentar, talvez devêssemos dizer que devem tentar sempre antes de desistirem daquilo que querem ser.
É diferente, tão diferente. Porque, mais tarde ou mais cedo, eles vão perceber que não são super heróis. Que não são capazes de tudo, que são crianças cheias de potencialidades, sim, mas que têm de encontrar o seu caminho. E é aqui que devemos estar, a orientá-los, a ajudá-los, a deixá-los tentar mesmo sabendo à partida que não vão conseguir. Faz parte do crescimento, faz parte da forma como devem ver o mundo. Se há crianças que têm uma auto-estima muito baixa e precisam de incentivo constante? Há, mas o incentivo deve existir de forma positiva e não encher as crianças de uma ansiedade, receio e insegurança extra.
Voltando ao Roberto, espero que ele seja capaz de filtrar a influência que o pai tem nos seus dias. Que tenha a capacidade de perceber que, apesar de tudo, mesmo que não marque, que deixe passar o central, que não consiga chegar àquela bola, que tem valor. E espero também que haja outra dimensão na vida dele, que goste de fazer outras coisas para além do futebol, porque se não correr como o pai dele quer ou se ele não conseguir corresponder, então poderá ficar sem chão. E sem sonhos.
E sem sonhos, morre-se um pouco todos os dias.
Não é isto que queremos para os nossos filhos.
Queremos que vivam. Que acreditem em si, conhecendo as suas limitações, trabalhando para as minorar. Que percebam que o amor que sentimos por eles não está dependente dos seus sucessos. Que sejam felizes com as pequenas coisas. Mesmo que essas pequenas coisas sejam as brincadeiras que acontecem no balneário depois de uma vitória tão desejada (mesmo que não tenham jogado).
Porque, na vida, nem sempre vamos a jogo. E temos de aprender que todos os papéis são essenciais, cada um à sua maneira.
imagemcapa@Weheartit.
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!
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