Se o seu filho o tira do sério, isso pode ser sério

Se o seu filho o tira do sério, isso pode ser sério
Na verdade as crianças não “tiram os adultos do sério”.
Os adultos já estão “fora do sério”.
Os adultos vivem “fora do sério” por questões pessoais!
Pelas suas próprias frustrações, preocupações, medos, mágoas, receios, pressa, pressões externas e internas. Os adultos estão constantemente fora de si, desarmonizados, encolerizados, contidos, como bombas prestes a explodir.
O que acontece é que mais facilmente se deixam explodir quando precisam lidar com alguém mais frágil, indefeso e que não precisam temer uma retaliação…
Por isso, antes de se permitir “sair do sério” com uma criança, reflita se você não está já “fora do sério” por outras razões na sua vida, razões que só você pode (e deve) tentar mudar!
Talvez seja a vida stressada, cheia de horários controlados por segundos preciosos, que não podem ser “perdidos” por causa de uma criança, que precisa de andar mais devagar para olhar para as pedras da calçada.
Talvez sejam as contas para pagar e os prazos para cumprir, que consomem, além da sua energia física, uma preciosa tranquilidade mental, tão necessária para desfrutar a companhia dos filhos.
Talvez sejam as expectativas pessoais, que visam sempre um futuro melhor, mas fazem esvair por entre os dedos qualquer possibilidade de viver o agora, e tal impossibilidade grita através do choro dos filhos, que imploram neste momento a atenção de hoje.
Os adultos estão constantemente “fora do sério” por causa das mágoas do passado, da pressa no presente e das angústias do futuro!
E as crianças, na verdade, precisam de muito pouco. No entanto, o pouco que precisam é algo que se tornou muito difícil para nós, adultos darmos! Precisam de tempo de qualidade, de olhar calmamente, de presença verdadeira, sem TV ligada, sem atender o telemóvel a meio da brincadeira, precisam de uma volta no bairro sem um “despacha-te”.
As crianças não nos tiram do sério, não nos cobram nada, é que nós, preocupados, ansiosos e infelizes, nos sentimos cobrados internamente, e quando uma criança nos pede algo simples, lá no fundo sentimos vergonha, pois descobrirmos que somos, ou estamos, incapazes de realizar até as coisas mais simples.
São as coisas simples que carregam em si as maiores alegrias. As nossas escolhas, conscientes ou não, determinam muitas coisas nas nossas vidas, e as crianças chegam depois de muitas dessas escolhas já estarem solidificadas; e chegam no meio de um turbilhão de preocupações, prazos, horários, dívidas e metas, chegam silenciosas no meio de mil vozes que nos dizem que são elas, as crianças, que precisam de se adaptar e de se encaixar. As crianças chegam e pedem-nos um pouco do nosso tempo, passos mais lentos, olhares mais atentos, abraços sem pressa, sorrisos sem limites…
Chegam e mostram-nos que nem nós deveríamos aceitar encaixar-nos na vida atribulada e vazia que nos consome na mesma medida que consumimos cada dia sem sentir, sem perceber.
As crianças não nos cobram. As crianças mostram-nos que estamos incapazes de desacelerar, de sorrir, de contemplar, de cantar ou dançar, de respirar e suspirar, de sentir alívio ou paz. E em vez de refletirmos sobre nossas escolhas, que podem não ter sido as melhores até então, mas que podem melhorar, ou até mesmo serem diferentes a partir de agora, nós “preferimos” ralhar com as crianças, bater nas crianças, “sair do sério” com as crianças!
Os filhos lembram-nos constantemente sobre o que realmente importa, especialmente quando não queremos que nos lembrem dessas coisas. Os filhos querem apenas um pouco mais de nós! Mas isso tornou-se quase impossível, porque perdidos entre as experiências do passado, a pressa no presente e o medo do que virá amanhã, nem tão pouco conseguimos lembrar-nos de quem somos, ou de quem queríamos ser…
Não nos lembramos de quem somos no meio de tantas preocupações e angústias!
Precisamos de refletir não só sobre os adultos que nos tornamos, mas sobre as crianças que nós um dia fomos!
Tentar lembrar-nos daquilo que sentíamos, o que desejávamos, o que era importante para nós quando éramos pequenos!
Não existem crianças que precisem de apanhar para aprender, o que existe, infelizmente, são adultos que precisam de bater, e que batendo, acreditam que estão a ensinar algo bom.
Bater, agredir, gritar, deixar chorar, apressar, negar, brigar, culpar, ignorar…
E isso tudo por causa das suas próprias questões pessoais.
É difícil e trabalhoso perceber se o problema no comportamento da criança pode ser a escola que ela é obrigada a frequentar, é muito difícil e trabalhoso perceber se o problema pode ser o ritmo acelerado da vida que nós escolhemos.
Pode ser trabalhoso perceber que o problema pode ser as pessoas que rodeiam as crianças.
Pode ser difícil e doloroso perceber que o problema podemos ser nós próprios.
Por isso, e por muitas outras coisas, decidimos que o problema é a criança, e por não conseguirmos mudar o contexto que nós vivemos, tentamos mudar a criança.
Romper com o passado, mudar o presente e temer menos o futuro, pode dar muito trabalho!
Então, decretamos que são as crianças que nos tiram do sério.
Quando cuidar e educar se limita a fazer dos filhos aquilo que nós queremos, quando se limita a enquadrá-los à força dentro de uma rotina alucinada, perdemos toda a leveza, a liberdade e a alegria.
Tudo se torna extenuante, e até aquilo que é natural é entendido como se fosse um problema.
Existem métodos, dicas de disciplina positiva que podem indicar o caminho, mas não há soluções prontas, especialmente se o que os pais procuram é um método milagroso que elimine todo e qualquer conflito.
As situações tensas, os embates, as crises, vão sempre existir, e são iguais em todas as famílias, o que difere é a capacidade que algumas pessoas tem de lidar com elas de uma forma mais leve e produtiva.
Não adianta querer resolver de imediato. E atualmente todos sofremos deste mal, queremos ser atendidos imediatamente, queremos que as encomendas cheguem o quanto antes, queremos que a fila ande o mais rápido possível, nós, os adultos, queremos que o link abra em um segundo, queremos o resultado já, agora, neste instante. E no que diz respeito a relações humanas, o tempo de resposta não está na velocidade de um clique, a resposta está na confiança que se planta a cada dia, mas se colhe num tempo que não podemos controlar. Criar e educar é uma construção diária, lenta, trabalhosa, que se prolonga por todo o tempo que durar a relação, ou seja: provavelmente a vida inteira.
O diálogo, a confiança e o respeito constroem-se no dia a dia, nas coisas simples, através dos detalhes.
Algo que aparentemente não deu certo numa determinada situação pode ter sido uma semente a germinar e gerar frutos benéficos num futuro próximo ou distante.
Nada se perde no que diz respeito aos cuidados com os filhos!
A maioria das situações de conflito que surgem, especialmente as rotineiras, as que se repetem, podem ser evitadas e contornadas.
Os momentos de crise, de embate entre pais e filhos, podem ser superados de forma harmónica e construtiva, isso se houver um pouco mais de paciência, boa vontade, autoconhecimento e tempo, coisas que dependem dos adultos e não das crianças.

Carl Gustav Jung já dizia que se encontrar algo que gostaria de mudar numa criança, deveria antes questionar-se se não há algo que deveria mudar em você mesmo.

Antes de erguer a voz a uma criança, reflita sobre o quanto está a ouvir a sua própria voz interior, e se está a ser capaz de compreender o que esta voz lhe diz.

Antes de levantar a mão a uma criança, reflita sobre o quanto está a levantar a mão para mudar o que não está bom, dentro e fora de si… Que nos sirva apenas de alerta, ou como um convite para refletirmos, que há sempre muito a mudar em nós próprios, quando temos o ímpeto de mudar algo numa criança!

Por Luzinete R. C. Carvalho (Psicanalista), psicanalista, em Visão Clara
Adaptado por Up To Kids®

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