Um diagnóstico não passa com a idade
Sou do tempo em que não se dizia a ninguém de que doença se padecia.
Sou também do tempo em que não se falava de saúde mental e quando havia uma leve referência a uma divergência, vinha logo um adjetivo insultuoso ou capacitista ou um sorriso amarelo e o ar enjoado de quem pede desculpa.
Também sou do tempo em que alguns médicos não apresentavam diagnósticos aos utentes. E ainda sou do tempo em que os pais não diziam aos filhos que doença tinham, que maleita os atacava ou se tinham algum problema – tanto é que eu tinha um vizinho cego da idade dos meus pais que foi escondido em casa pelos pais e nunca foi à escola ou saiu daquele local, exceto para ir ao médico de táxi.
Quando a minha mãe notou que eu era uma miúda com demasiada pedalada para qualquer pessoa comum aguentar, que não dormia uma única noite sossegada, que andava sempre com os joelhos cheios de cicatrizes constantes e a cabeça cheia de galos, que não se calava um minuto e não dava sossego a ninguém, levou-me a um pediatra. Conta ela que eu consegui virar-lhe o gabinete do avesso sem vergonha nenhuma na cara e ele deixou, para, no final, chegar à conclusão que eu tinha era energia a mais e que isso passava com a idade. O irónico é que eu ouvi a mesmíssima coisa cerca de 25 anos depois acerca das minhas filhas e eis-nos aqui, com um diagnóstico de perturbação do espectro do autismo.
Não passou com a idade, como é óbvio, claro e evidente.
O que veio com a idade foi uma confusão mental cada vez maior. Um desgaste imenso e, no meu 2º ano de Faculdade, um diagnóstico de esgotamento cerebral (na altura ainda não nos referíamos a isto como burnout) com a possibilidade de cura do sono (que também se usava muito na altura) e diagnóstico de depressão.
Começou ali o meu primeiro round com antidepressivos e ansiolíticos (algo que voltei a repetir uns 4 anos depois e repeti dali a 5 anos, já depois de ser mãe). Só começámos a chamar os bois pelos nomes quando eu já tinha aí os meus 15 anos. E, mesmo assim, não devia falar disto com muita gente.
Não sei qual era o objetivo mas incomodava-me.
Foi numa época em que começava a subir o número de pessoas com depressão e eu não conseguia entender por que não se falava mais do assunto. Enquanto isso, claro que a minha agitação interior, a minha cabeça que funcionava sem parar, as parassónias continuaram e quanto a isso não havia nada a fazer.
Aprendi a conviver muito bem com esta irrequietude. Ganhei vergonha na cara e deixei de ser a mete-conversa com todos. Ensinei-me mecanismos de mascaramento de ansiedade, de desorganização mental, de confusão e, no exterior, passei a ser muito criteriosa, organizada, responsável, certinha. A minha mente era o oposto e o caos imperava. Eu detesto estabelecer contacto ocular forçado e obrigatório em situações sociais e ser obrigada a prestar atenção sem rituais ou apoios motores mas também aprendi a lidar com tudo isso.
No ano passado, depois de fazer algumas avaliações creditadas, obtive um diagnóstico informal de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção. Teria sido muito mais útil na altura em que nos foi dito que, em teoria, “isso passa com a idade”.
As minhas filhas não passaram por isto.
Não nos ficámos pelas primeiras respostas de “está tudo bem com elas”, “cada criança tem o seu ritmo”. Insistimos em procurar respostas certas e adequadas. E fomos bem ouvidos, elas foram bem avaliadas. Tiveram a última avaliação em setembro de 2021 – e chegou-se ao seu diagnóstico, que faz todo o sentido e nunca nos trouxe dúvidas do que poderia ser.
Ao contrário do que se passou comigo, elas nunca serão aquelas miúdas estranhas sem saberem porquê, sem uma certeza do porquê não encaixarem em determinado padrão. Sem saberem o que se passa com elas – que não é absolutamente nada de errado. Ao contrário do que se passava na minha infância e adolescência, na infância e adolescência delas falamos abertamente de saúde mental, de neurodivergência e neurodiversidade, temos profissionais mais atentos e mais respostas técnicas.
Sempre fui de opinião que “informação é poder” e que deveremos sempre saber o que se passa connosco, como podemos agir em conformidade, como somos. E que se deve falar das coisas e não enfiar a cabeça na areia até porque de avestruzes não temos nada.
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O esforço de manter uma vida normal em tempos difíceis, a vários níveis… Em suma, uma aventura vivida a 4.