Querida filha,
Mais uma vez me dirijo a ti na calma dos dias, pensando naquilo que viverás, à distância do tempo que não controlo.
É-me permitido imaginar, até planear, mas tenho plena noção de que o teu futuro a ti pertence. Que a pessoa que serás terá a minha influência naquilo que conseguir para te tornares boa, decente, correcta, feliz, mas no restante estarei sentada na plateia a assistir ao espectáculo que vais dirigir com aquilo que te dei, mas principalmente com aquilo que farás do que o mundo te der e fizer de ti.
Seja como for há coisas que, inevitavelmente, vais experienciar. Boas e más.
Vais fazer planos e ter a certeza absoluta daquilo que queres e ver a vida fazer-te mudar de direcção uma e outra vez.
Vais ter várias conversas com o espelho. Farei os possíveis para que o teu reflexo seja sempre algo positivo.
Vais conhecer muitos professores, para grande parte deles serás apenas mais um aluno na lista, mas se tiveres sorte conhecerás aquele que reconhece a tua luz e puxa por ti para que a deixes brilhar.
Vais sentar-te na melhor cadeira do melhor cinema e, mesmo assim, ter alguém atrás de ti que se esquece do telemóvel ligado durante a sessão, que insiste em cochichar num volume obsceno, que te dá pontapés nas costas constantemente ou que come pipocas de boca aberta depois de demorar cerca de vinte intermináveis segundos a encontrá-las no fundo do balde. Ou todas as anteriores.
Vais desejar que não te estejam sempre a perguntar como está a correr a escola, e as notas como vão ser. Ou pelos namorados. E aquela amiga que deixaram de ver lá por casa (e que, como é óbvio já não é tua amiga!).
Vais desejar ter mais tempo para fazer praticamente tudo: dormir, fazer os testes, estar com os amigos, namorar, viajar, estar de férias.
Vais perguntar-te sobre o que é certo e o que é errado e por que é que as pessoas insistem em ver tudo em preto e branco quando o mundo tantas vezes tende a ser cinzento.
Vais assistir a violência e perceber o que isso desperta dentro de ti.
Vais querer ver menos os teus pais até que quererás vê-los mais vezes.
Vais lembrar-te para sempre da tua primeira conquista plenamente consciente.
Vais arrepender-te de ter usado o dinheiro da mesada naqueles ténis que querias tanto, mas que só tinham no número abaixo do teu e compraste na mesma.
Vais sentir-te injustiçada uma série de vezes até que a tua maturidade te permita olhar o mundo com outros olhos e te faça ver como tens sorte em estares rodeada das pessoas que estás e de viveres no país onde vives.
Vais olhar para as matérias da escola e acreditar que nunca na vida irás pô-las em prática – até que isso aconteça diariamente quase sem dares por isso.
Vais continuar a pedir desejos às estrelas cadentes, mesmo quando já não tiveres idade para isso.
Vais apaixonar-te uma e outra vez, de várias maneiras, por várias pessoas e achar que não vais recuperar de um coração partido, até estares outra vez apaixonada e achares que daquela vez nem contou porque agora é que é.
Vais entrar no mar à noite mesmo contra todos os avisos dos teus pais.
Vais emocionar-te com coisas simples.
Vais redescobrir memórias há muito escondidas dentro de ti.
Vais desiludir-te de morte com os outros e algumas vezes contigo mesma.
Vais ter amigos brutais e outros que ninguém vai perceber o que têm em comum.
Vais usar roupa que mais tarde te envergonhará.
Vais achar que estás sempre esquisita nas fotografias ou que aquela que a tua mãe insiste em dizer que adora é simplesmente horrível.
Vais fazer promessas que deixarás por cumprir.
Vais levar uma tampa.
Vais dar algumas tampas.
Vais quebrar regras.
Vais ouvir bons conselhos. Vais ouvir maus conselhos. Vai chegar a altura em que não vais ouvir conselhos de ninguém. Mais tarde serás tu a dar conselhos.
Vais viver muitas coisas que eu vou ver, algumas que me vais contar, tantas que eu nem sequer sonharei e outras tantas que não estarei por perto para assistir. Espero que a lista tenha maioritariamente coisas boas.
Que se um dia escreveres uma lista desta aos teus filhos haja alguns itens que se possam riscar. Se bem que acho que o comportamento das pessoas no cinema vai ser uma constante. Não é defeito do ser humano, é feitio. No cinema, como na vida, tudo se resume a uma escolha. Que pessoa queres ser? A que dá pontapés na cadeira da frente ou a que se senta confortavelmente e assiste ao seu filme sem perturbar ninguém?
Só o tempo o dirá, minha querida.
E que o tempo seja bom para ti.
Um beijo,
Mãe.
Autora orgulhosa dos livros Não Tenhas Medo e Conta Comigo, uma parceria Up To Kids com a editora Máquina de Voar, ilustrados por aRita, e de tantas outras palavras escritas carregadas de amor!